O caso da injeção

Prefiro acreditar que na minha família a união é diferente! Resume-se numa aglomeração de gente na casa dessa ou daquela vó sob qualquer pretexto de festa.

Nada de ajudar uns aos outros, nada de ombro amigo, nada de unir forças, de fazer vigília ao lado da cama de algum moribundo. Só panelinhas, só tias destilando seus desdéns, tios contando vantagem e aí quem tem mais grana vence e primos maiores esmagando nos menores.

Minha mãe se relacionava com as pessoas rangendo os dentes, chispando fagulhas pelos olhos e engolindo o ácido corrosivo do rancor, ou abraçada à sua bolsa barata e vazia, pronta para usá-la como escudo, se necessário. Parecia que gostavam dela como se gosta de um extraterrestre, talvez porque fosse justa.

Mas se o assunto fosse alguma receita ela era a estrela, era a Cruzeiro do Sul que brilha tanto porque está numa região muito escura do Universo.

Só que não é essa a história que quero contar!

Eu evitava o máximo possível ficar com meus primos porque era muito mirrado, parecia que seria esmagado a qualquer momento! A verdade é que eles gostavam de ver suas sombras crescendo sobre a minha magrelice.

Depois eu descarregava minha potente fúria nos insetos do jardim esmagando-os como faria com meus primos se fossem daquele tamanho. Prazer nenhum; só um arrepio na espinha a cada estalo do exoesqueleto, a cada cessar de movimento das muitas pernas.

Preferia pegar meus carrinhos e brincar aos pés dos homens. Não era para me sentir protegido; era só para imitar seus gestos. Como cruzar as pernas, como segurar a cabeça em atitude pensativa, como movimentar as mãos ao contar um caso excitante, como rir, como olhar, como mentir.

Quando havia um segredo no assunto eles me mandavam brincar em outro lugar e eu ia para onde não havia mingúem. Não era difícil encontrar meu pai por lá. Brincávamos juntos e sentíamos que aquele mundo, aquela união familiar não era para nós.

Mas também não é isso que quero contar!

Como eu brigava para não entrar no banho! Parecia um bicho selvagem e depois não queria sair de jeito nenhum! Quando minha mãe conseguia me tirar de lá — e só ela conseguia — eu estava tão enrugado que parecia uma uva passa albina!

Um dia estava impossível me agüentar! A tarde estava nublada e quente e já estávamos atrasados para ir à casa da vó Lúcia — a doce e sofrida mãe da minha mãe — e eu não entendia por que precisava tomar banho. A Dani não estaria lá!

Daniella, com dois éles, prima por parte de pai, um ano mais nova do que eu, na ingenuidade e pureza dos quatro anos dizia que queria casar comigo! Logo comigo!

Dani era a única criança que me respeitava e nós brincávamos juntos sempre que podíamos; antes de sermos atrapalhados pelos grandalhões munidos com a força fugaz da altura.

Todas as tias exclamavam: “Nossa! Como ele é pequenininho, né?” E uma delas adorava dizer quando minha mãe estava perto: “Será que ele vai ser anão?” e as outras, com os olhos, agarravam forte seu pescoço e ela, sínica, perguntava: “Que foooi???” e saía às pressas. Como minha mãe ficava magoada! E me enchia de vitaminas doces e coloridas.

A Dani sabia que eu era capaz de correr, cair, levantar, subir em árvores, essas coisas que as crianças fazem — e eu fazia—, mas ela ficava por perto, com seus olhos negros e vivos sem perder um movimento meu, um pensamento.

Quando o sol batia nos seus cabelos loiros, eu dizia que o brilho era de ouro, ela pegava uma mecha e cheirava, me olhava entre os cabelos e dizia: “Ó, é cheiro de ouro!” e eu, vermelho como um tomate, aspirava o cheirinho de maçã, e ela recebia esse carinho com as bochechas rosadas.

Havia uma pureza na nossa amizade que tenho saudade, sem interesses, sem dominações, sem insultos, só um respeito virgem como uma flor branca que acolhe com pudor o carinho do orvalho.

Mas ainda não é isso que quero contar...

Naquele dia em que estávamos atrasados para ir na vó Lúcia eu inventei de brincar de barquinho no lavatório. Peguei uma metade da saboneteira de plástico e saí navegando pela água. Minha mãe gritava que estávamos atrasados e eu navegava, imponente, pelas águas traiçoeiras da pirraça.

Eu não queria ir! Já havíamos almoçado e tinha janta para nós; não precisávamos ir! Naquele dia meu pai não falou: “Precisamos ir, não tem nada pra comer em casa!” Essa terrível tarefa sobrava pra ele, coitado! Coitado nada! Quem mandava beber no bar o nosso almoço, a nossa janta, a nossa cabeça erguida? O mínimo que ele podia fazer era se ajoelhar e falar isso pra mim olho no olho!

Preferia ficar navegando no lavatório com meu barco. Todo marujo quando está no mar é livre e naquele momento eu era um marujo! Minha mãe deu um grito assustador e me puxou pelo braço e segurei firme na borda do lavatório. Na parte de baixo havia uma lasca na louça e fez um corte fundo no meu dedinho esquerdo. Não senti dor, só ódio! De quem? Da primeira pessoa que vi na frente!

Se fosse o Papa eu sentiria ódio dele, mas foi a minha mãe! Ela não sabia o que fazer, pálida, as mãos no rosto, os olhos arregalados e eu berrava e o sangue escorria e pingava em enormes gotas no chão... Ainda me pergunto o que será que passou no coração dela!

Meu pai chegou de olhos arregalados e eu me agarrei a ele. Minha mãe correu para dentro e voltou com um monte coisas nas mãos e num minuto o curativo estava pronto!

Eu só queria berrar, berrar, estava insultado, não por ela, talvez pela magrelice, pelo meu nome que eu não conseguia falar direito — tem erre no meio — ou algo assim!

Me vestiram, meu pai me colocou sentado nos ombros e correu para a farmácia mais próxima, na esquina da rua onde era a sua loja de roupas, onde era o seu calvário e onde aconteceu a coisa mais maravilhosa da sua vida: conheceu minha mãe!

Entre meus berros, o farmacêutico trocou o curativo. Eu, sentado no colo do meu pai, agora apenas chorando de dor, menos insultado, pensava se não seria melhor ir na casa da vó Lúcia fazer provavelmente nada, além de me aborrecer. Mas ficar aborrecido não saía sangue.

Acho que agora consigo contar o que quero. Sinto-me com coragem suficiente, então vamos lá onde não quero retornar...

Como uma galinha que está prestes a virar canja, senti que havia algo errado. O farmacêutico pegou uma seringa com uma agulha enorme e enfiou pela tampa de um vidrinho e me olhou como quem olha o melhor lugar para bater um prego Tentei correr, mas meu pai me segurou com mãos que soavam como aço. Berrei e ninguém veio me socorrer! Geralmente seria ele, o meu herói de meia cuia, a me socorrer...

O farmacêutico bem que tentou aplicar a injeção antiinflamatória na minha bunda, teoricamente com mais carne, mas não achando jeito de ter mais paciência, enterrou a agulha monstro no meu braço duro de terror!

O problema não era a dor; aquela agulha enorme era a pior ameaça para um ser humano normal! E eu sou normal! Pelo menos era... Assim que entrou na minha carne, tudo ficou leitoso, os sons distantes até ficar tudo negro e silencioso...

Acordei com dois rostos sofridos e ofegantes em cima de mim. Só a dor da agulha latejava dentro de um calombo roxo no meu braço magricela.

Quando vejo a cicatriz no meu dedinho, lembro com saudade da Dani. Se ela estivesse lá comigo talvez a agulha não fosse tão assustadora.

Mas também não era isso que queria contar...

Carlos H F Gomes
Enviado por Carlos H F Gomes em 15/02/2008
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