O espelho

- Não é normal - disse eu ao meu primo.

- Não é normal o quê?

- O olhar do gajo. Vítreo, desfocado. Parece um Robot.

O meu primo é um céptico que veste "pullover" aos losangos, corta o cabelo com risco ao meio e acha que tudo o que acontece é normal ou, pior, tem uma razão de ser. Ao interpelá-lo desta vez, adivinhava já a reacção - sabia antecipadamente que ia tratar o assunto com desinteresse. Sempre fomos diferentes e a bom da verdade, não irei mentir, a família é um pouco conservadora - são quase todos como ele. É o primeiro filho do irmão mais velho da minha mãe, herdou do pai o porte, a estatura física impressionante e a casmurrice.

- Anda cá, tens de ver o gajo. Anda antes que se vá embora - insisti. Não respondeu.

Tínhamos saído do Bar há pouco mais de meia hora, vinte minutos antes das três e talvez tivesse bebido um pouco mais que ele, já nem sei... Noite óptima, céu limpo, sem uma única nuvem, era possível ver lá ao longe, por detrás da parede mais próxima, o cintilar das estrelas. Meu primo não me ligava e descobri que, motivo outro para lá da descrença, olhava para cima tentando (em vão) descobrir a Ursa Maior.

Agastado, pensei "Desta vez não levas a melhor, não vais ficar indiferente". Se tão bem pensei, melhor o fiz: descalcei o sapato do meu pé esquerdo, fiz pontaria ao meio da testa e acertei-lhe em cheio, mesmo em cima do dedo mindinho.

O resultado foi o que esperava: Primeiro deu o berro. Depois levantou-se e veio na minha direcção. Tendo chegado, olhou para nós e disse-me para sair da frente do espelho.