C' est la vie

Ouço passos, pegadas firmes e sujas seguem outras leves e finas de um sapato preto comprado em alguma dessas lojas superficiais. Conheço o som deste par de saltos finos, não é tão diferente de tantos outros que ela sempre usa quando vem me visitar. É o som do fim, do inevitável aproximando-se cada vez mais rápido. A porta se abre, consigo ver pela última vez o relógio redondo, com aquele sorriso de dono do tempo, debochando da minha condição de substituído. Ele não pára de me fitar, com seu mais tic que tac, tentando ainda parecer imponente. Um idiota, penso. Um dia ele estará na mesma condição de inutilizado. Mas por hoje, preciso me recolher ao estado de descartado. De certo modo, o fim não me parece tão triste. Já engoli tanta coisa fétida nesta minha vida, talvez seja hora de repousar. Vejo um dedo indicador fino, de unha perfeitamente vermelha, apontado pra minha cara. Conheço aquele dedo, perdi a conta de quantas vezes o vi bem próximo da minha boca, mais próximo ainda da garganta dela. Toda vez que aquele dedo apontava na porta, sabia que teria que engolir mais um segredo nojento. Sinto duas mãos grossas, calejadas do trabalho árduo, balançarem minha cabeça pra lá e pra cá. – Quero que termine isso ainda hoje, antes do meu marido chegar! Disse com tom de imposição que só ela sabia fazer. Sempre com aquela sobrancelha erguida, o principal sinal de desprezo com a classe subalterna trabalhadora. Percebi, que, até aquele momento, nunca ouvi a voz dela. Durante todos esses anos de segredos, o único som que sua garganta emitira, era o de soluços de lágrimas frias caindo sobre seu rosto plastificado. – Simsenhora! Isso aqui fica pronto antes mesmo do relógio bater meio dia! Bater? Enquanto o maltrapilho se esforça pra esboçar algumas palavras corretas, ponho-me a rir. Agora sim que aquele cuco vai ficar se achando o maioral. Ela sai, fica do lado de fora esperando o meu cortejo. Provavelmente deve estar pensando em todos os segredos que tenho guardado. Pra ela é um alívio desfazer-se de mim. É hora de despejar sua fraqueza em outra garganta. Mais nova, mais ingênua, menos ameaçadora. Sinto ainda as mãos grossas, cada vez mais fortes pressionando meu corpo pra cima. De uma só vez, sou retirado das entranhas do concreto, e levado rapidamente para o lado de fora. Mal dá tempo de olhar pro meu antigo abrigo e despedir-me. Antes de sair, sou fitado uma última vez por aquele punhado de números. Desta vez, sinto um certo olhar de saudade. Não consigo esboçar nenhuma reação, exceto a de liberdade. Fico ao lado da parede, deitado de cara pro chão. Só consigo sentir um vento leve e fresco. Ela não está ali! Sinto então, mãos suaves, com marcas do tempo, tocar minha cara. – Nossa, não podemos desperdiçar isso, daria um ótimo vaso. Aquela muda de coqueiro cabe certinho nesta bacia; Você não acha Drômio? A voz é de tia Joana, uma velha simpática e ruim da memória. O único membro desta família sem segredos e com bom gosto pra literatura. E por isso, menos amada. E a quem ela atribui sua pergunta, é seu felino felpudo de nariz rosa. Sinto aquelas mãos frágeis arrastarem meu corpo jardim a fora. – Pronto, ficará perfeito aqui. Estou novamente de pé agora, sentado sobre uma grama refrescante, coberto por algumas folhas verdes ainda molhadas do orvalho. Tia Joana e seu felino éfesiano (ou seria siracusiano) saem por um instante e voltam com uma plantinha ainda dentro do saquinho de compras da última feira de domingo. Sinto gosto de terra em minha garganta. Nunca senti gosto tão peculiar. Confesso que é mais agradável do que muita coisa que me obrigavam engolir durante esses anos. – Pronto! Diz a experiente mulher. – Esse coqueirinho ficou lindo! Minha boca escancarada pro céu azul com sol fraco, típico de início de setembro. Minha garganta afogada em terra e raízes finas e jovens. Agora sou um mero vaso de jardim, cujo único propósito é abrigar uma planta que, provavelmente crescerá e me partirá em pedaços. Essa não é a liberdade que sonhei. Ainda estou nesta casa, perto desses seres “desenvolvidos” racionalmente e sem nenhum senso de intimidade. Intimidade sim. Até parece que sou obrigado a ver, ouvir lamentos estúpidos, criados por pessoas desprovidas de afeto. Pelo menos não estou mais aprisionado entre quatro paredes. Não serei mais obrigado a ouvir, nem ver e muito menos engolir lástimas e desdém. A única coisa que tenho de agüentar é esse gosto de raiz úmida. E que o santo Pinho Sol me livre daquele quadrúpede que atende por nome de Olavo. O dia passa, muito rápido. Aquele redondo convencido ficaria com inveja agora. Cai a noite. Fica tudo mais úmido. Como a sensação de orvalho gelado é boa. Vejo luzes. Abre-se um portão. Alguém desce da lata motorizada, chamada de BMW. Não me engana. Não significa best man of the world. Pelo menos não ele. Conheço aqueles sapatos. Aquele terno. Ultimamente tenho visto mais esses trajes. O que será que aconteceu com as camisetas e bermudas de cores neutras da marca de jacaré? Roupas típicas de finais de semana. Como é mesmo que ele falava? Ah, ‘rapidinha’. Cínico e egoísta. Depois não entende porque ela é indiferente, e os filhos sem limites. Mas não se pode esperar muito de um business man , que dá mais importância aos clientes americanos, uísques e inferninhos recheados de elas mais jovens. Assim como Helena, a antiga usuária do meu, também antigo, abrigo. Helena é uma versão jovem e alegre de tudo o que ela deve ter sido um dia. Filha de dona Eunice, a subalterna mulata da família. Fruto do desejo dele. E da desconfiança dela.

Três semanas se passaram, até notarem minha presença neste gramado verde. A única que veio me visitar foi tia Joana. Só por causa desse cocoeiro que cresce sem parar dentro da minha garganta. Domingo, a família reuniu-se pra comemorar os anos dela.Todos os amigos superficiais vieram, sempre acompanhados de elas plastificadas. Ela parecia estar mais alegre e jovial, sempre com aqueles saltos altos e finos, suas unhas impecavelmente vermelhas e sua sobrancelha imponente. Quando o sol atingiu a metade do céu, no vigésimo primeiro dia desde a possível substituição, meu destino foi completamente selado. Ouvi passos em minha direção, vozes embriagadas esboçavam palavras desconexas. Dedos indicadores apontavam para o cocoeiro. – O que é isso? – É um...é um... – Sim! É isso mesmo! E não tardou pra que mais vozes e dedos indicadores aparecessem. Ela percebeu a agitação no jardim. Muitos deles estavam caminhando em direção contrária a piscina, o que levava ao aglomerado de gente à nossa volta. – O que está acontecendo lá? Eunice não soube explicar; – É o vaso de tia Joana, senhora! A taça de champanhe francês foi colocada imediatamente sobre a mesa, e os saltos finos percorreram o gramado em alta velocidade. Ao se aproximar, ficou furiosa. Ordenou ao subalterno que trouxesse, – Imediatamente!, tia Joana; – Aquela velha tresloucada passou dos limites! Estava transtornada. Sua face e suas unhas formavam um tom avermelhado intenso. Todos comentavam em voz baixa, com olhos surpresos e bocas molhadas do champanhe importado . – Mas que sublime! Não sabia que você apreciava Duchamp! Disse o sujeito de cabelos perfeitamente desarrumados e roupas extravagantes. Cínicos, concordaram no mesmo instante com o sujeito rosa-choque. -Que idéia mais incrível! – Sempre nos surpreende com seu bom gosto! Sua face iluminava-se a cada elogio, seus lábios abriam-se em sorrisos felizes. Provavelmente a única vez que sentiu felicidade “verdadeira”. Lançou-me um olhar incisivo, com a sobrancelha erguida, imponente. Neste momento meu destino selou-se. Seria obrigado a permanecer no jardim pra sempre, observando e guardando os segredos deles. Por essa, nem mesmo Duchamp esperava. O que fazer? ...assim são as cousas!