Além da terceira margem

Era um homem trabalhador, cumpridor de suas obrigações. Não era melhor nem pior que o restante dos conhecidos. Era quieto, aparentemente feliz, porém sossegado, conformado. Quem regia o ambiente familiar era a esposa, praticamente responsável pela educação dos três filhos. Certo dia, deu-se a construir uma canoa. Foi encomendada sob medida, feita de madeira resistente, que pudesse durar uns vinte, trinta anos – Se fores, não há necessidade de retornar. A esposa inconformada, os filhos confusos. A canoa ficara pronta e o momento da despedida, finalmente, chegara. Sem demonstrações de alegria, nem tristeza, ao menos uma recomendação se quer foi feita. Juntou algum alimento, um bocado de água, entrou na canoa e acenou um adeus. Uma partida sem destino, já que não aportou em terra e nem seguiu o curso do rio. Ficara sempre dentro da canoa, dentro da terceira margem. Seu universo paralelo, era motivo de desassossego de parentes, vizinhos e seus familiares. A esposa, envergonhada, reagira com sensatez; daí a razão de todos os pensamentos e indagações, mas que ninguém ousava dizer. Naquela casa não era permitida tal palavra. Embora abandonados e confusos, os filhos não permitiam a imagem do pai sendo caluniada. Ele, o filho menor, o mais sofrido com a partida sem propósito; tinha a figura paterna como o centro de toda sua admiração, devoção e obediência. Durante muito tempo, foi ele quem o manteve vivo, seja levando sobras das comidas deixadas pela mãe; seja pela lembrança e referência que fazia todas as vezes que o elogiavam. – Foi meu pai quem me ensinou! Mas ele sabia que seu pai não ensinara nada. A única lição que aprendera fora a de abandono e incertezas. Sua irmã casara-se, teve filho e fora morar longe dali com a mãe. Seu outro irmão também seguiu suas próprias escolhas e foi-se dali para sempre. Apenas ele permanecera. Sempre a espera de uma explicação ou de uma desistência. Ele sabia que seu pai era dependente da sua solidão. Estavam com os destinos entrelaçados. O menino cresceu, os primeiros fios de cabelos brancos surgiram; e junto com eles, a culpa. Já era homem feito, estava envelhecendo e sabia que não havia mais tempo pra mudar as escolhas. E ele as teve, mas os laços com a presença fantasma não o deixaram fazê-las. Perdera a juventude e agora estava perdendo a maturidade. Seu pai, há muito, havia perdido tudo . O que sobrou daquele homem que fora um dia, era apenas o laço ‘invisível’ que ele mantinha com o filho. Poderia estar velho, doente, padecendo de algum desses malefícios que a idade avançada traz. Pensando nisso, uma culpa imensa atingiu seu triste coração e num lampejo decidiu ir a margem. Queria trocar de lugar com velho, e quem sabe, finalmente, descobrir o motivo de anos de solidão e ausência. Um lenço branco acenado de um lado para o outro, e o vulto, do que fora seu pai um dia; aparecendo em pé, manejando o remo n’água em sua direção. E a maturidade naquele momento deu lugar as incertezas de menino. Correu dali, e para lá, longe. Longe de lá. Aquela figura morta não era seu pai. Não mais. Agora ele não passava de uma lembrança. Uma imagem na margem do rio. Sofrera ainda mais com a ausência, com a velhice, com o remorso. Adoecera. E o rio era toda a presença que nunca teve. E naquele momento, teve vontade de ir-se, dentro de uma canoa, para além de qualquer margem.

[ homenagem ao centenário de Guimarães Rosa ]