Imprudência Médica

Imprudência Médica

Certa vez quando acabara meu horário no plantão do hospital em Palmeirópolis, fui abordado para dar assistência a uma complicação pós-parto - desta feita, não na medicina humana, mas sim, na veterinária.

Apesar da minha recusa, não tive como escapar da missão, já que tratava-se de meu irmão Paniago - ele tinha ligeira experiência no ramo - fora dono de uma casa veterinária em Formoso das Trombas em Goiás. O outro era o Zequinha, dono da vaca doente e também gerente da única agência bancária da cidade.

Como não atender a um irmão? Ou mesmo ao homem do dinheiro da cidade?

Como agravante para a minha situação, diziam: não temos veterinário com experiência nesta complicação e o único profissional da cidade não pode resolver o caso. É o senhor mesmo doutor! Precisamos de seu parecer e conduta!

Após as considerações preliminares, onde tomei conhecimento de que a vaca havia parido uma linda bezerra, e não expulsara a placenta – enquanto ouvia o relato do caso clínico eu fazia uma analogia com as complicações similares da mulher - nesses casos era moleza resolver o problema, bastava uma extração manual da placenta – curagem uterina - seguido de medicação à base de ergotamina e antibioticoterapia. Pensei logo: vai ser fácil resolver o problema de meus dois amigos. Nossa cliente – a vaca, seria salva para continuar amamentando sua bela cria. Enquanto eu, ficaria em paz com meu mano e o crediário no banco continuaria disponível.

Após listar todo o material necessário para a missão: luvas, antissépticos, medicamentos e tudo o mais que a operação iria exigir. Partimos em direção da fazenda, a alegria era geral. O proprietário não economizava adjetivos para vangloriar de sua grande sorte, haja vista que aquela vaca além de ser de boa qualidade, somava a isto um valor sentimental, dentre todas era a preferida de seus filhos: mansa de coçar, boa de leite e muito charmosa.

Lá chegando nossa cliente pastava tranquilamente próximo dali. Pelo aspecto físico nem parecia com cara de doente. Apenas numa visão mais detalhada era possível ver que a mesma exibia sinais de discreta hemorragia.

A mesma foi trazida ao curral, contida e jogada ao solo - iniciava ali então meu trabalho de curagem uterina - tendo a convicção de que o útero de minha paciente era algumas vezes mais espesso em relação ao da mulher.

Enquanto trabalhava retirando os cotilédones, Paniago e Zequinha conversavam animadamente, não faltando os comentária efusivos do proprietário. Falava da grande sorte de ter encontrado um médico de folga naquela tarde. Dizia: quantos já não perderam seus animais por não ter a brilhante ideia de chamar esse médico. Não custava dedicar parte do seu tempo ao socorro também dos animais!

Confesso que começava a divagar em meus pensamentos a possibilidade desta nova atividade médica assistencial.

Quando de repente percebi que ao retirar mais um cotilédone ( unidade placentária), notei que junto vinha também uma alça intestinal, e para complicar mais ainda a situação, a mesma já estava lacerada e eliminava fezes. Tal foi meu susto e surpresa que tratei logo de finalizar o trabalho devolvendo o intestino para o abdômen da vítima. Àquela altura eu queria sair dali o mais rápido que pudesse. Iria conviver dali para a frente apenas com o meu peso de consciência poi já sabia que ela morreria na certa.

Foi quando disse: pronto já terminei o serviço!.

Para a minha maior surpresa o Zequinha disse também assustado: Dr. Jales acho que ela esta morrendo – Seus olhos estão vidrados! Em seguida a mesma dera sinal de que não tinha mais vida.

Senti um aperto no peito, o suor descia pelo meu rosto molhando minha roupa, minha voz ficou embaraçada. O sentimento de perda naquele instante foi o maior que já tive em toda a minha vida como médico dos humanos e confesso que até hoje ele me acompanha..

Enquanto demonstrava embaraço diante da situação, o dono da vaca procurava consolar o médico derrotado, mas também não deixava de transparecer a dor do prejuízo.

Feito os preparativos para a remoção do corpo, seguimos a caminho de volta para cidade. Não saia da minha mente o presença do delito ali cometido. Chegando lá, fui logo ao encontro do veterinário - aquele que não pode atender ao chamado. Recebi dele os ensinamentos de que nesses casos a única coisa que deve ser feita é deixar o animal se alimentando normalmente desde que com cobertura de antibióticos e um derivado da ergotamina, a limpeza se fará de forma natural, mesmo porque embora a vaca seja maitas vezes maior que a mulher tem um útero muito mais fino e não permite tal manipulação. Esta explicação só fez complicar ainda mais meu espírito de inquietação. Agora tinha certeza que havia mesmo cometido um crime de imprudência profissional – O que fazer para reparar o dano?

No outro dia, logo bem cedo, após uma noite mal dormida, onde parecia ouvir os gemidos da infeliz bezerrinha à procura do leite materno que não mais existia. Levantei bem cedo e dirige-me à agência bancária onde depositei na conta corrente do gerente a valor justo para o pagamento da vítima. Ao lhe entregar o recibo ele não aceitou e devolveu o dinheiro para minha conta. Fatalidades acontecem meu amigo!

Dias depois ao visita-lo novamente ele quis fazer uma consulta: Dr. Jales, Bete minha esposa está apresentado uma micose estre os dedos dos pés, que não melhora com nada, estou pensando em colocar Lepecid – produto veterinário. Foi quando lembrando do episódio da vaca, disse logo: Amigo não vamos misturar medicina com veterinária, já imaginou se isto complica também a vida de sua querida esposa, vejo-a em meu consultório, com isso faço o que devo fazer e não saio por ai atropelando meu juramento hipocrático.

Jales Paniago

Conto.

Jales Paniago
Enviado por Jales Paniago em 04/04/2008
Código do texto: T930542