A TRAVESSIA

“...Valeu à pena? Tudo vale à pena se a alma não é pequena”.

Fernando Pessoa

O dia amanheceu claro, a luz penetrou pelas frestas acordando a “índia” para um novo dia. E ele seria diferente! Era 23 de novembro de 2008, muitos sóis já haviam passado...

Ela havia deixado sua aldeia há muito tempo, vivia na cidade grande, juntamente com as filhas a quem tanto amava. Na noite anterior, tinha feito as malas para a grande viagem que faria, dormira tarde, o sono havia fugido frente aos seus pensamentos que voavam, atravessando os rios e as florestas como as flechas dos guerreiros em dia de competição.

Sentou na cama e fez uma prece, depois ficou apreciando o início do dia. Tudo era silêncio, lá fora, volta e meia ouvia um chilrear dos pássaros madrugadores que aguardavam a comida que ela depositava diariamente em uma bacia de barro, no quintal de casa.. Levantou-se, penteou os longos cabelos, trançou de forma tranqüila e foi alimentar as aves. Contou quantas havia e sentiu falta de uma, eram velhas conhecidas, então pensou: - Será que ela não gosta de despedidas? Tirou o pensamento tolo e ao entrar em casa, deparou-se com a ”Cida”, sua cadela vira latas. Essa chegou cabisbaixa, rabo entre as pernas, humilde parou junto dos seus pés soltando grunhidos doídos. O que está acontecendo com essa cachorra? Perguntou baixinho. Acocorou-se, passou a mão na cabeça da amiga fiel e observou que seus olhos lacrimejam (Ela chora? bicho também chora?) A cachorra se pôs a lamber seus pés e mãos. Então, afagou seus pêlos e observou que suas tetas a estavam cheias de leite. Às vésperas, seus filhotes foram doados para amigos... Com certeza sua Cida sofria com saudade dos filhotes, e logo mais, também de sua dona, por isso grunhia sofrendo. Abraçou o animal mais uma vez e depois saiu para tomar um banho demorado no chuveiro do quintal da casa em que morava, queria fazê-lo jogando água com uma cuia sobre a cabeça, e assim fez. Enquanto a água escorria por seu corpo, agradeceu a Deus pela vida, pediu forças para levar adiante a sua decisão.

No retorno, depois de vestir-se de forma simples, dirigiu-se ao quarto para ver as filhas, era domingo, todas dormiam tranquilamente, seu coração encheu-se de saudade prévia. Foi para a cozinha preparar o almoço. Seria o último dia que faria comida em casa, isso de forma rotineiramente, estava mudando de cidade, e, ia sozinha, nesse primeiro momento, não poderia vacilar agora diante do quadro pintado à sua frente, seus presentes, seus tesouros não iriam junto, ficariam dando seqüência à vida que tinham. Ela fizera uma escolha muito difícil, mas o preço para ser e estar feliz nunca é barato.

Seu olhar se dirigiu para uma foto onde ela e as meninas posavam, seus olhos pareciam tão iguais! O mesmo sorriso, a tez morena, os cabelos lisos e longos, ao observar cada uma, via-se como num reflexo do espelho. De repente se sentiu carente, estava sozinha nesse momento, eram quase dez horas da manhã, Dentro de cinco horas “o avião” sobrevoaria as montanhas, atravessaria os estados, iria planar sobre as altas nuvens, e a levaria ao novo lar..Seu coração deu um pulo, a ansiedade aumentava a cada momento.

Decidiu escrever cartas para cada filha, com certeza, seriam lidas depois que não estivesse mais ali perto, sabia que iriam chorar como ela estava fazendo nesse momento, mas o conforto era saber que se amavam independente da distância que existiria entre elas, amor independe de estar perto ou não, apenas de amar. Deixou suas cartas em lugares estratégicos e ficou chorando de saudade. Pegou antigas bonecas pertencentes às filhas que estavam guardadas e colocou em meio à bagagem, guardou fotos que retratavam vários momentos em família, precisava senti-las mais perto ainda do seu coração materno.

As garotas despertaram, chorosas, depois, almoçaram juntas. As horas passaram tão rápido que quando se aperceberam o carro já estava apitando, rapidamente se dirigiram ao aeroporto. Lá, amigos a aguardavam para se despedirem dela. Sua família ligou... era a mãe e irmãs que se encontravam em outra cidade. Elas afirmaram o grande amor que sentiam e a abençoaram, afinal, sua família tinha por ela um amor imensurável. O coração daquela mulher estava apertado, mas a sua decisão continuava em pé, bem mais à frente, suas filhas entenderiam que a mãe procurava o seu espaço, a sua felicidade individual sem, contudo deixar de amá-las.

O seu vôo foi anunciado. Meu Deus! Como é difícil dizer adeus (pensou alto), choros, beijos, orientações. Pedidos aos amigos, “olhem por minhas filhas”, ela repetia, mas precisava ir, sua caçula a presenteou com um macaquinho de pelúcia, e disse que estava sendo tão difícil essa separação!! Quem iria chamá-la cedinho para estudar? Quem iria cuidar dela quando adoecesse? Ficaram chorando por um longo tempo, mas havia as outras....Conversou e beijou com cada uma, deu a sua benção e “atravessou a ponte” (sala de embarque). Do outro lado, uma nova vida aguardava aquela mulher. Acenou mais uma vez para os amigos e filhas e desapareceu no corredor, entrando no túnel que a levaria ao avião. Seu rosto estava lavado em lágrimas, mas tinha a cabeça erguida, essa mulher altiva fizera uma escolha e estava se mantendo firme. Lá atrás, rompera corrente, entendera que amar é direito de todos, é vida, por isso, não partia com medo do que viria, pelo contrário, sentia-se segura para viver em qualquer lugar.

E, do “outro lado da ponte”, A FELICIDADE a aguardava de braços abertos, deram-se as mãos e seguiram rumo a um futuro cheio de expectativas, de alegrias e muito amor, um novo ciclo iniciou para essa mulher que ousou ser feliz.

Muito em breve, uma das filhas viajará ao seu encontro, assim, abrirá um novo caminho, prova que essa mãe soube cria-las e educa-las como seres conscientes de que viver só vale à pena quando lutamos por nossa felicidade.

Ao conhecer esta história eu aprendi uma grande lição: O amor vence tudo! Esteja onde estiver, mãe será sempre mãe e os filhos serão sempre eternos, estando separados pela distância ou não.

E...

A História dessa mulher não acaba aqui.... Durará o tempo de todos os ciclos da vida, com seus capítulos sendo escritos em cada episódio chamado VIDA!