Era noite de natal e eu dormia em altas profundidades, ainda entorpecido pelo vinho e avelha comilança que o dia festivo enseja.

Minha alma, todavia, estava irriquieta e queria sair do meu corpo exausto e flutuar livre pelas planícies fora da matéria e da dimensão conhecida, a perscrutar por aí, com que a descobrir os mistérios que rondam a vida.
Saí com ela e demos numa casa barulhenta e afastada, aonde as pessoas celebravam ainda o natal com gargalhadas estridentes e muita bebida.
Víamos o pessoal alegre portando copos, cantando e invariavelmente comendo nacos de carne e doces. O clima reinante contagiava até mesmo as redondezas, não somente pelo barulho, pelo cheiro bom da comida, mas também pelas ondas de alegria que impregnava o ar nas proximidades.

 Havia uma árvore de natal enorme e iluminada na sala e um papai Noel imenso e com cara entristecida e notamos que ninguém prestava atenção a eles.
 Fiquei pensativo, porque aqueles símbolos de natal estavam tão entregues ao abandono dos olhos e cuidados daquela gente, que transpirava amor e alegria. Perguntei-me porque haveria esta dissociação com o principio da festa, que era natalina. Perguntei-me também, porque, não se colocava junto a árvore de natal, fotos ou imagem do aniversariante do dia, principalmente as imagens dele, mesmo aquelas já surradas do menino na manjedoura, cercado de animais que, pelo semblante, que tenho visto retratado, parecem claramente transparecer o destino trágico e ao mesmo tempo glorioso daquela criança linda e nada indefesa.

Depois pensei: Festa é assim mesmo, nunca importa o motivo principal, o importante é o encontro das pessoas, a celebração da amizade, da vida enfim e assim, achei que o aniversariante, não se importaria com o seu completo esquecimento por parte daquelas pessoas e em vista da alegria e da paz, ali presentes, os abençoariam da mesma forma.

Seguimos dali para lugares imprevisíveis, pois quando se viaja com a alma, nunca se sabe quais serão os próximos passos nem onde se vai chegar. Demos, então, com um casebre de tábuas, algumas delas, carcomidas pelo descaso e pelo tempo, formando vãos que a deixava vulnerável aos olhos das pessoas que passassem na rua. Eu e minha alma chegamos então bem perto de um grande vão e dividimos nossos olhos para ver aquela realidade.
A humildade daquele cenário consternou minha alma.
Era um casebre, apertado. Uma casinha restrita a um ambiente único e fiquei comiserado pela cena que ali se passava. Um homem velho e negro, de cabeça branca, cortava com as mãos um tanto tremulas um pedaço de pão doce e o repartia com uma mulher também muita envelhecida, que jazia na cama. Não havia quartos no casebre, como disse, mas apenas um ambiente onde não se distinguia o quarto, da cozinha ou da sala.  Não havia arrumação, o que indicava que a mulher não saía da cama. Completava o cenário de pobreza, roupas dependuradas num fio de arame, amarrado num prego na parede até o outro lado. Era o detalhe que mais marcava o quadro de miséria e desolação, daqueles seres abandonados pela sorte.
Não percebi qualquer alegria, qualquer espírito natalino, nos olhos daquele homem. Não havia árvore de natal nem qualquer lembrança do aniversário de Cristo, naquela humilde moradia.

Não me contive e clamei em tom mais alto que o normal: Senhor! Porque permites tanta tristeza, tanta miséria e injustiça, justo na noite do teu aniversário?  O natal é para todos, ou somente para aqueles que têm algum dinheiro e saúde para celebrá-lo? Isto dá o maior baixo astral em qualquer um. Fiquei visivelmente indignado e ali, eu e minha alma, choramos.

Foi então que ouvimos uma voz que ecoou grave e mansa que parecia vir de dentro do casebre.
-Meu caro cristão! Não se apiede, nem julgueis a festa que me fazem meus filhos na terra, porque tu nada sabes da verdadeira alegria do natal, nem dos seus verdadeiros sentimentos. Sabeis menos ainda, do destino e mistérios da vida de cada um.

Sim era Jesus, o mestre, o grande salvador,  ali falando comigo e minha alma  ao lado dos velhos. Por um momento, perdi a fala e deixei meus olhos embevecidos falarem por mim e fui todo ouvido. Gravei suas palavras e ele completou com calma e firmeza:

- Há mais de mim, num simples pedaço de pão do que em banquetes que o dinheiro pode comprar. Há mais do meu sangue num simples copo de água do que nos vinhos e champagnes caros que tomam nesta noite.
-A verdadeira alegria é a da alma e esta não é medida por decibéis ou copos de bebida, mas pelo amor expresso pelo coração. Nem só de alegria vive o natal, mas de comunhão. Natal é gesto, não presentes
-Natal não é a celebração minha, mas dos homens, pois são eles afinal, que precisam da redenção, não eu.
-Natal é amor e aqui neste casebre, existe mais amor do que sua vã filosofia, pode imaginar.
-E meu caro e eu estarei sempre presente, em todos os lugares,  onde houver amor.
-Se não percebes isso ainda, é porque provavelmente o sentimento de amor está morto dentro de ti. Ressuscitai-o. Ressucita a mim também dentro de ti! Ama-me e eu estarei contigo e viverei dentro do vosso coração, onde será sempre natal, pois sou a alegria, o amor, e a vida.
Fiquei maravilhado com as palavras do mestre. Vi então que os velhinhos comiam o pão com uma enorme satisfação. Havia paz interior naqueles seres, havia comunhão, havia gestos de amor do homem ao servir à mulher enferma e onde havia tudo isso, havia, claro Jesus. Fiquei emocionado e acordei para escrever-lhes sobre o que presenciei nesta noite de Natal e pedir-lhe duas coisas : Que não se esqueçam de Jesus no seu aniversário e lembrar de Jesus também é praticar o amor que ele pregou.

 
Celio Govedice
Enviado por Celio Govedice em 20/12/2008
Reeditado em 25/04/2015
Código do texto: T1345766
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