Cruzeiro de Natal

Plácido Pereira era um cara estressado até o dia em que encontrou Cândida Magalhães. Num cruzeiro de Natal. Após a ceia magnífica que entrara pela madrugada. Música ao vivo, todos os tipos de comida, bebida, sobremesa, café, chá, etc. Coisas que só acontecem em viagens desse tipo.

De manhã, por volta das 11 horas, ela descia a escadinha que dava acesso ao bar do convés onde ele estava. Parecia ter torcido um dos pés ao final da descida. Ele procurou ser solícito, diante da expressão dela, parecendo sentir dor.

- Machucou muito?

- Não, não. Acho que foi apenas impressão minha, ela lhe respondeu, procurando pisar firme de novo, já no piso horizontal. Ou o uísque de ontem... quer dizer, de hoje.

O navio passou pelo estreito que tinha o nome dela. Que não era nada cândida. Parecia mais um “fio desencapado”, no dizer de muitas de suas amigas. Mandara o marido às favas e, com seus próprios recursos, viera fazer o cruzeiro. Com o que contava para superar a sua conduta contundente e as atitudes que também reconhecia como beligerantes. O que tanto a incomodava.

O navio era um dos melhores. Linha italiana: MV Mare Australis. Conforto além do desejável, apesar da cabine intermediária, com vista para o mar. A viagem incluía visita ao Cabo de Hornos, à Ilha Magdalena, ao braço noroeste do Canal Beagle e à cidade mais austral do mundo: Ushuaia, na ilha da Terra do Fogo. Iriam quase ao fim do mundo.

Plácido verificou depois que Cândida ocupava uma cabine do mesmo tipo da sua ao final do corredor em que estava. Aquela viagem poderia fazer com que ele se deparasse consigo mesmo, que visse afinal o amigo que fazia questão de não ter. Da mulher não soube jamais. Os filhos não queriam saber dele. Sobraram-lhe as férias e o dinheiro. Que a eles também não interessava, pelo menos era o que parecia.

Não demorou um ano inteiro para que ambos deixassem de ter as qualidades que os incomodavam. Passaram a viver juntos, praticamente logo após o fim do cruzeiro. Ela não se importou em ocupar o pequeno apartamento dele, um quarto-e-sala confortável.

Plácido deixou de ser estressado, embora a viagem não lhe tivesse proporcionado o tão almejado encontro consigo mesmo. Mas achara algo de que também precisava. Uma mulher extremamente carinhosa e meiga, jamais podendo suspeitar que se tratasse de um “fio desencapado”. Quando ela lhe falou a respeito, as gargalhadas foram tão sonoras que ela suspeitou que algum vizinho no corredor pudesse ter ouvido.

Cândida, que também fora procurar no navio os motivos que faziam com que fosse conhecida da forma que era, deixou de lado essa preocupação a partir do encontro com Plácido. Um homem fino, delicado culto e que em momento algum poderia sugerir a alguém que fosse um cara estressado.

Chegaram os dois à conclusão, depois de mais um ano juntos, de que a gente nem sempre encontra o que vai buscar. O que às vezes pode ser até melhor.

Rio, 25/12/2008

Aluizio Rezende
Enviado por Aluizio Rezende em 25/12/2008
Reeditado em 25/12/2008
Código do texto: T1352081
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