As teias da rotina

A mulher olhava as teias espalhadas pela casa. Pareciam cortinas enfeitando levemente suas paredes. Buscava inspiração para suas poesias e cada aranha naquelas teias lembrava sua vida.

Estava casada há muitos anos e vivia cheia de sentimentos engasgados em sua garganta, povoavam loucamente sua cabeça.

Sempre fora muito organizada, limpa. Porém, depois de algum tempo, a monotonia morna, a rotina mórbida, chegara alastrando-se, nela, em seu marido, interpondo-se entre eles.

Já não lhe apetecia ariar as panelas, limpar paulatinamente as teias. Pois a sua vida não tinha também tantas teias? E o marido nem ligava em tirá-las. As teias sentimentais entre os dois, eram tamanhas que conseguiu separá-los envolvendo-os nessa rotina mortal.

Ela lia muito, tentava não olhar para as teias que se alastrava, pensava nas tantas aranhas que existia nas casas do mundo todo, espalhadas, esparsas, famintas.

Suas poesias pareciam ter vida. As letras saltavam do papel, num grito desesperado de socorro, de agonia. A mulher parecia esperar apenas a picada fatal das aranhas. Sua dor era incomensurável e suas poesias encantadoras. Pois não é verdade que as poesias, os poemas mais lindos de amor foram escritos em momentos de muita dor?

Todos os dias, seu marido chegava a casa, falava das teias, como se somente ela fosse culpada pelo acúmulo e disseminação delas. Não fazia nada para retirá-las, falar não iria adiantar, precisariam agir. Mas a sensação era de que ele já fora picado pela aranha, que com seu veneno o imobilizara diante da vida.

Ela tecia seus poemas sem fim. Numa interminável espera [nem sabia mais o que esperava] ela tecia, tecia, tecia. Parecia a Penélope, do Ulisses, pois todos os dias tecia e desmanchava o que havia feito. Seu marido nunca lia seus escritos, pois ela toda noite os desfazia, apagava, consumia com tudo.

De manhã re-começava.

Porém, naquele dia, ela como moribunda que solta o último suspiro, achou que seria realmente o fim de algo que nem sentiu ter começado. Naquele dia suas poesias estavam tão cheias de sentimento que pareciam personificar sua dor.

Foi para o banho, penteou os longos cabelos e olhava o pôr-do-sol. Até tinha esquecido de como era lindo e espetacular este fenômeno da natureza.

Seu marido chegou, ela nem percebeu. Ele estranhara o silêncio absoluto na casa. Entrou sem fazer barulho e viu as folhas cheias de escritos que ela esquecera em cima da mesa. E ele começa a ler.

As palavras de amor estavam cheias de uma paixão que o relembrava os primeiros dias de casados. E algo foi abrasando-o por dentro.

Ele subiu, viu a esposa pensativa, linda como jamais percebera, chegou por trás dela, sentiu o perfume que emanava daquela que ele amara um dia. O beijo em seus cabelos foi inevitável.

Uma força o impelia a fazer coisas que há muito tempo estavam esquecidas. Ele a tomou ternamente, e aos poucos o fogo começou a queimar as teias. Juntos fizeram uma faxina na alma.

Ah, as aranhas! Elas tiveram que migrar para outra casa, pois não suportavam mais o calor desta.

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Milena Campello
Enviado por Milena Campello em 02/03/2009
Reeditado em 02/04/2011
Código do texto: T1464870
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