A última noite

Sentirei tanto medo daquilo que fui, pois aquilo que fui é a única coisa que não voltarei a ser jamais. Como em todos os corações, no mural do meu peito haverá um espaço vazio, destinado ao que sonhei existir. Tomarei um chá com a tristeza porque ela revelará que nada há ocultado. A melancolia anunciará que as coisas estão exatamente nos seus lugares e, portanto, não há vazio algum a ser preenchido. Repudiarei a verdade então, porque não haveria de aceitar minha cruz, não a aguentaria. Eu, fraca, não saberia conduzi-la. Penso que, para sermos felizes, alguém, pelo caminho, precisou sofrer para que isso acontecesse. E culparei a tudo e a todos por terem tomado de mim a parte da alegria que me cabe na vida..

Minha memória devaneava, naquele instante você possuía uma personalidade completamente inovada, transportando, não sei para onde, cada um de seus defeitos passados. Então, seus antes estrangeiros braços se tornarão tão macios quanto impossíveis, vão encarnar o gosto doce de um lar, e não me verei envolta por eles.

Ontem à noite foi uma terra distante. Tão longe era que nunca se poderá sentir saudade do que passou, pois a saudade se descreve, se cristaliza, tem um nome, e o que aconteceu conosco jamais teria uma denominação. O homem tem disso, sente alguma estranha sensação a respeito do que passou e crê piamente que aquilo tem como nome a saudade, catalogada, crua, saudade. A culpa está nesse tenebroso medo do imensurável, do inteligível.

Minha última noite fora tão longínqua que as memórias se fundiram, e jamais haverá tecnologia ou humanidade suficiente para me transportar novamente até lá., pois o sagrado sempre se encerra para assim o ser.

Talvez eu até seja feliz agora, inutilmente feliz. Não seja tola, você pouco sabe sobre felicidade, até ontem nem tinha certeza de que tal coisa existia, reprimia a eu mesma em silêncio. Como se uma vaga lembrança do que tão sorrateiro existiu fosse o bastante para acalmar uma alma que há muito não dava de cara com a paz. Penso agora na estrondosa serenidade que foi o antes e me bate uma ventania à porta, anunciando que, ao permitir que ela entre, a recordação arrastaria com ela todo calor pertencente ao hoje. E o que teria eu a perder? A sanidade, talvez. Mas era preciso mergulhar. Além do mais, minhas atitudes eram sempre tachadas insanas e no entanto eu bem sabia que meu maior medo diante da forma com que agia era exatamente o contrário: tinha a plena certeza de que louca eu não era, era repleta de sanidade mental, apesar de tudo. Quem sabe até possuía tanta consciência de vida que, naquela noite, transbordei-me inteira.

Depois daquilo, tentarei encaixar nossa história em cada música banal que tocar no rádio. Meus dias serão noites e minhas noites serão dias, até que tudo se converta em algo tão homogêneo que meus pensamentos passarão a ter um único núcleo: você. Fatos isolados da minha vida não mais possuirão sentido, viverei naufragada em uma fusão de sua existência e dependerei do teu existir para eu continuar a ser. Deixarei de comer por pensar em você, ou comerei catastroficamente mais, por pensar em você. E eu vou te amar, vou te amar como o pobre diabo que ama a vida que nunca viveu.

Irei suplicar piedade quando tua voz ecoar como o guizo de uma serpente no deserto do peito. Perguntarei a Jesus “Onde é que estava enquanto eu chorava no escuro?”, mas sua resposta será seu silêncio, e minha arma será a solidão. Escreverei em cadernos, em folhas, em minha pele, porque se eu fosse capaz de dizer o que sinto, não caberia esta caneta que agora tenho em mãos. Te procurarei dentro dos livros, mas os poetas ridiculamente felizes soarão tão felizes quanto sua tentativa de assim ser. E irei amaldiçoar o passado e o presente, implorando por um depois que, não importaria como fosse, seria bom se apenas fosse depois de você.

Ontem à noite ainda está vivo, e assim permanecerá. Ontem à noite foi uma terra tão distante que nunca conseguiremos voltar até lá, ontem a noite foi uma terra distante. Jamais poderei sequer sentir saudade. E vou te amar, como o miserável que ama aquilo que somente em sonho existiu.

Chana de Moura
Enviado por Chana de Moura em 01/04/2009
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