Das Coisas do Mundo

Estávamos ali naquele campo imenso. Sob uma tenda branca que ocupava grande parte de toda a área. E abrigava várias tendas menores. A maioria brancas, algumas amarelas. Um dia de sol, mas sem aquele calor conhecido. Uma brisa fresca ia e vinha, deixando nossos corpos mais alegres.

Participávamos do 1º COMURP – Congresso de Mulheres Rezadeiras do País – na simpática e acolhedora cidade de Queixada Alta, na Serra do Altamirando. Certamente perto de 2.500 pessoas distribuíam-se em grupos de 100, em média, pelas 30 tendas sob a tenda branca maior.

A mais concorrida era a de Mãe Bentinha do Albernassi, conhecida rezadeira da região a quem eram atribuídos verdadeiros milagres, sobretudo com a utilização de chá e ervas do mato para a cura da depressão e outros sofrimentos psíquicos.

Uma outra bem disputada pelos participantes era a de Mãe Coelhinha do Mato Virgem. Talvez isso se devesse ao fato de, a despeito das roupas que usava, ser difícil para Mãe Coelhinha aparentar mais idade, já que 70 anos era em média a idade das rezadeiras no Congresso. Mãe Coelhinha seria bem mais jovem. Era o que se comentava.

Todas usavam blusas coloridas de mangas curtas, sem gola e com discreta abertura abaixo do pescoço, e saias rodadas também estampadas, similares às das baianas das Escolas de Samba. Vários colares de miçangas em diferentes cores pendiam-lhes do pescoço até pouco abaixo dos seios.

Alguns afirmavam que Mãe Bentinha teria mais que 80 anos, mas a sua jovialidade e expressão facial, marcada por um aconchegante bom humor, podiam garantir que a rezadeira não teria mais que 65 anos. Era negra como o carvão. Era o que diziam os cartazes promocionais do evento. Isso fazia com que lhe sobressaíssem os alvos dentes de brilho intenso nas gostosas risadas que não costumava economizar, como víamos nas fotos que promoviam o Congresso.

Pensei em me juntar ao grupo em volta de Mãe Bentinha, sem qualquer preocupação em ser atendido, face ao número de pessoas que brigavam pela chance de ao menos ver a rezadeira. Para isso seria preciso subir num banquinho ou numa cadeira.

- Vai lá na Mãe Coelhinha. É a mesma coisa, disse-me uma mulher a meu lado.

- A senhora vai desistir?, resolvi indagar.

- Depois vou ao terreiro dela com mais calma. Sabia que no Congresso seria assim. Muita propaganda. De mais a mais Mãe Coelhinha é discípula de Mãe Bentinha. Dizem que Coelhinha é neta de Bentinha.

- Ué, mas isso não seria também objeto de propaganda?

- Não, as duas não admitem isso e nem gostam de falar no assunto. O que implica praticamente numa proibição.

- Mas elas se dão bem...

- Claro, exatamente como avó e neta. Você sabe que avó é mãe duas vezes.

Depois de subirmos num dos vários banquinhos que havia por ali para vermos ao menos Mãe Bentinha, dirigimo-nos ao grupo de pessoas sob a tenda que abrigava Mãe Coelhinha.

Tratava-se a pessoa ao meu lado, como soube depois, de uma experiente psiquiatra, com mais de vinte anos de profissão. Apesar de cordial e risonha era agitada e de posições firmes no que dizia. Logo que chegamos ao novo grupo, a psiquiatra notou que nem todos seriam atendidos por Mãe Coelhinha. Era preferível permanecer ao abrigo de certa irradiação espiritual que todos sentiam, mas que ninguém denunciava. Era o que eu sentia também. Mas a psiquiatra não. Decidiu acercar-se da rezadeira para ser atendida em poucos minutos.

Optei por ficar mais afastado e aguardar um pouco para familiarizar-me melhor com a situação. Na verdade não havia pensado em ser atendido. Fora ali apenas para ver a movimentação das pessoas, depois da estrondosa propaganda que tivera o evento, e porque nada tinha para fazer naquele final de tarde de sábado.

Havia alguns claros no grupo. Aqui se podia ver Mãe Coelhinha sem ser necessário subir num banquinho. Percebi que Mãe Coelhinha era discreta na maneira de sorrir, ao contrário de sua presumível avó. Notei também que parecia incomodar-lhe uma mecha de cabelos louros que teimava em cobrir-lhe um dos olhos sempre que abaixava um pouco a cabeça. A neta era, portanto, branca. E a avó bem negra. A relação de parentesco ou consangüínea só poderia ter acontecido em vidas anteriores.

Era notável a maneira com que Mãe Coelhinha atraía a atenção das pessoas que dela se acercaram com poucos olhares na direção do grupo. Tinha evidentemente percebido a nossa aproximação, minha e da psiquiatra.

Quando a psiquiatra chegou-se a ela para ser atendida, senti a irradiação de seu olhar, embora a duração dele tenha sido de poucos segundos. Tocou-me uma sensação de aconchego, igual à que identifiquei no bom humor de sua presumível avó. Algo assim também como amparo e quietude, de que não me lembrava da última vez que sentira. Olhei para as outras pessoas e, pela expressão de seus rostos, jurei que estivessem sentindo o mesmo que eu. Desejei então também ser atendido pela rezadeira.

Antes que pudesse movimentar-me, vi que uma menina de uns sete anos rapidamente assumira o lugar da psiquiatra no banquinho diante de Mãe Coelhinha. Trazia um vestidinho estampado, terminando pouco acima dos joelhos, permitindo que se lhe adivinhássemos as perninhas grossas. Os cabelos negros em cachos escapavam-lhe pelo pescoço do chapeuzinho de fundo branco e listras vermelhas. Lindo como eu nunca tinha visto. Talvez por não ser mais usual.

Só aí Mãe Coelhinha sorriu mais demoradamente, inclinando-se para, com delicadeza, desfazer o laço de fita vermelha que prendia o chapeuzinho. Logo os cabelos da menina espalharam-se pelos seus ombros e parte das costas. E ela ergueu-se para pendurar-se no pescoço da rezadeira e beijar-lhe demoradamente a face. Eu jurava que tinha visto pelo menos uma lágrima rolando no rosto de Mãe Coelhinha.

Olhei para os lados. Nos rostos de todos a sensação de um indescritível contentamento, embora não houvesse uma clara demonstração. Talvez porque o que sentimos com intensidade não precise ser necessariamente expressado. Ser e não parecer. Olhei também para os lados para ver se não haveria outro concorrente agora.

Aproximei-me finalmente do banquinho. E fui sendo acomodado. Por uma espécie de força suave que me colocava, sem qualquer sensação de desconforto nos joelhos ou nas pernas, sobre um banco de nível bem inferior ao de uma cadeira normal. O brilho na madeira indicava o número de pessoas responsáveis por aquele tipo de verniz no assento do banquinho.

E seus olhos eram verdes. Da cor do mar infinito. Os risos discretos, que davam ao olhar profundo certo tom ameaçador. Mas sempre benévolo. E cheio de luminosidade. Bondade e perseverança eram também o que seus olhos mostravam. A mecha de cabelo louro tinha deixado de incomodar aquele semblante, que muito provavelmente jamais teria achado com o que se incomodar nesse mundo.

- Você veio, então.

- É, vim saber o que a senhora poderia me dizer.

- Curioso apenas, não é? Porque sei que aflito não está, afirmou, seus olhos verdes me dominando completamente.

- Acho normal a curiosidade. Talvez todos a sintam.

- Não é bem assim. Muitos vêem aqui pesando que nós que rezamos temos chance de resolver todos os seus problemas.

- Mas isso é um pouco do que sentimos no ar, retruquei, feliz por estar dizendo o que sentia.

- Você sabe muito bem que o problema de alguém é só esse alguém que resolve.

- Mas a ajuda, espero que me corrija, pode ser fundamental. As palavras saíam de minha boca sem qualquer sacrifício. Nunca me senti com tanta liberdade para me exprimir.

- Sei que quer ser delicado, mas não vou corrigi-lo nunca, continuou Mãe Coelhinha. Fiquei com a impressão de que nosso diálogo não terminaria ali. Ou estaria sendo muito presunçoso?

- Você acredita em Deus?, ela me perguntou.

- A senhora sabe, Deus é coisa que a gente sente, respondi.

- Gostei da resposta. Aliás, a pergunta foi meio indecente. Ou agressiva.

- Jamais. Não pode ser nunca agressiva uma pessoa que tratou com tanta delicadeza aquela menina do chapeuzinho. Foi comovente.

- As crianças são sempre anjos. Se bem que, com seis anos, hoje, nem sei se isto é assim tão verdadeiro...

- Bem, não sei do que mais temos pra falar. Pelo menos aqui, apressou-se Mãe Coelhinha em dizer. Percebo que você bem que poderia estar sentado aqui desse lado.

Será que ela está pensando que podemos continuar nos falando depois? Hoje?

- Mas, na verdade, Mãe Coelhinha, você não disse nada do que presumo que saiba, das coisas do mundo, ponderei, surpreendendo-me por não ter gaguejado ao trocar o “senhora” por “você”.

- Não sei muito mais que ninguém. Apenas ouço bastante e, quando acho que posso, arrisco dizer que o melhor caminho seria este ou aquele. Mas que a escolha não pode ser minha, ela retrucou, com a graça de quem prende o outro pela singeleza do olhar. De qualquer modo, podemos nos falar depois. Assim que eu tiver ouvido as outras pessoas. Não estão faltando muitas.

Ficaria ouvindo-a pelo resto da noite.

Ao final ajudei-a a dobrar sua tenda e a colocar seu banquinho numa capa de flanela com fecho-eclair. Deveríamos ir conversando até ao ponto do seu ônibus. Agora tornava-se mais claro. Ela tinha se livrado de um lenço colorido que lhe encobria parcialmente os cabelos. Estava definitivamente ao lado de uma mulher que não teria mais que vinte e sete anos.

- Você mora perto daqui?, perguntei-lhe, preocupado com o fato de ela ter que voltar sozinha.

- Perto das Sete Chaves.

Estranhei o fato de ela não se ter reunido às outras rezadeiras e irem todas juntas pra casa. Em todo caso nem todas deveriam morar no mesmo lugar.

Sete Chaves, como fiquei sabendo depois, era uma das favelas da região.

- Se incomoda se eu levar-lhe até sua casa?

- Claro que não. Na verdade poderia supor que houvesse esse convite, disse-me ela, com a franqueza que tem a cor verde do mar infinito. Aquele jeito de falar me deixava inteiramente à vontade, sem que, contudo, eu pudesse imaginar que houvesse qualquer coisa diferente de conduzi-la até à sua casa.

Mas o carro, logo que abri-lhe a porta, impregnou-se de uma atmosfera em que se combinavam conforto espiritual e aconchego. Ao mesmo tempo parecia não haver mais necessidade de palavras. A comunicação se fazia pelo ar. Estávamos ainda na área reservada ao estacionamento, dotada de total segurança, apesar de àquela hora já praticamente deserta.

O banquinho dentro do saco de flanela e a tenda dobrada foram acomodados no banco de trás. No banco da frente não ouvíamos as nossas respirações. Nada falávamos. Não devemos ter percebido quando nossas bocas se aproximaram. O beijo doce inundou-me o pensamento. E só foi acabar na cama do meu quarto de hotel.

No dia seguinte morri. E estou escrevendo pra vocês aqui do céu.

Rio, 14/04/2009

Aluizio Rezende
Enviado por Aluizio Rezende em 14/04/2009
Código do texto: T1538037
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