Duas Soluções

As escadas de madeira conduziam ao salão. O brilho das tábuas corridas. Uma cortina azul meio encardida escondia os basculantes de ferro bem atrás do palco. Roger e sua banda já haviam iniciado o happy-hour.

Lá estava ela na mesma mesa do bar. Os garçons sabiam quando ela chegava pelo barulho surdo dos sapatos nos degraus de madeira. Vinha sempre às terças e quintas. Chegava por volta de 7h30 e saia pouco depois da 10h. Ficava olhando os casais nem sempre bem treinados na dança de salão.

Na primeira vez a impressão que deu era a de que iria esperar por alguém. Como a sua presença, sempre sozinha, tornou-se maior, os empregados pensaram que fosse ao bar por causa do vocalista da banda. De fato não seria novidade se alguma mulher olhasse para Roger de maneira diferente. Fazendo jus aos seus 23 anos e à delicada aparência feminina de seu rosto.

Raramente alguém se aproximava de sua mesa. Embora o bar se localizasse na zona boêmia da cidade, tratava-se de local requintado. A seleção se dava pelos preços cobrados, que não estavam na média dos outros bares do bairro.

Houve uma exceção numa quinta-feira.

- Posso sentar? Alguém com você?

- Claro, fique à vontade.

Tratava-se de Beatriz, que chegara ao bar pouco depois das 8h e percebera uma única mesa ocupada por uma morena de longos cabelos negros.

- Não tenho vindo muito aqui, mas hoje está cheio.

- É, isso não é muito comum.

- Você vem sempre?

- Tenho sido um pouco constante.

Beatriz ignorou a aparente frigidez da morena.

- Sou Beatriz. E você?

- Isadora.

- Bailarina também, como a grande pioneira da dança moderna?, provocou Beatriz.

- Quem sou eu. Acho que não tenho vocações para fins dramáticos, foi a reposta, acompanhada de um sorriso discreto, de quem sabia que a pergunta fazia alusão a Isadora Duncan.

- Desculpe a brincadeira. A gente acha que ficamos mais bonitos quando sorrimos.

- Tudo bem. Trabalho com decoração, disse Isadora, fingindo não notar a ironia.

- Venho aqui às vezes na quinta, quando o trabalho no tribunal é pesado.

- Juíza?, surpreendeu-se Isadora.

- Sim, mas livre de qualquer juízo, quando me acho longe daquele trabalho estressante.

A partir daí a conversa se tornou mais descontraída.

Aproveitando-se da surpresa de Isadora, que nunca tinha conversado com uma juíza, depois de muitas respostas evasivas, Beatriz ficou sabendo que a morena era arquiteta e que trabalhava com decoração. Soube também o porquê da presença dela ali. Seu marido, às terças e quintas, chegava mais cedo. Do que se valia para evitar um encontro mais prolongado com ele, face a um relacionamento inteiramente desgastado, segundo ela mesma.

- Ainda bem que me livrei disto quando tinha 27 anos.

- Nossa, que coisa!, exclamou Isadora, disfarçando o riso.

- O que foi, menina?

- Nada. È que é a idade que tenho.

- Ah, garota ainda. Pois é, há onze anos que estou livre de homens. Podem ser bons, mas são também uns chatos, completou Beatriz, permitindo pelos gestos que fazia com as mãos que Isadora notasse o esmalte provocativo de suas unhas, além do corte curto do cabelo alourado. E ainda que a morena soubesse que conversava com uma mulher de 38 anos.

De repente, não se sabe de onde, aproximam-se dois grandalhões da mesa delas. Um deles de terno.

- Com licença, senhora. Posso ver seus documentos?, indaga o grandalhão de terno, dirigindo-se a Isadora.

- Por favor, você se importa de mostrar as suas credenciais?, intervém rapidamente Beatriz.

- Desculpe-me, mas a pergunta não foi dirigida à senhora.

- Sim, mas trata-se de minha amiga e, como sei que ela não vai fazê-lo, vou lhe exigir que apresente as suas credenciais. Senão, apresento-lhe as minhas: sou Beatriz Weirkershymer, juíza de direito.

- Sou Eduardo Cancella, da Polícia Civil, disse o grandalhão de terno, mostrando a Beatriz a sua carteira funcional. Desculpe-me, doutora, é que a sua amiga tem todas as características da pessoa que estamos procurando.

- Sim, mas tenho certeza de que não se trata de Isadora.

- Claro, claro. O nome da pessoa não é Isadora. Peço desculpas e me retiro, finalizou o policial, afastando-se rapidamente.

- Não disse a você que os homens podem ser uns chatos?

O fato serviu para que se tornassem mais íntimas. Passaram a conversar pelo messenger, sempre que Isadora achava-se sozinha em casa. Veio o convite de Beatriz para o primeiro almoço. A que se seguiram outros, sempre no espaçoso apartamento da juíza. Muitas vezes com a presença de Juliana, de cinco anos, praticamente uma cópia fiel da mãe Isadora.

O crescente interesse de sua parte por esses encontros, virtuais ou físicos, começou a preocupar Isadora. Era evidente que a forma delicada, sempre com discrição, com que era tratada pela juíza e até os presentes que recebia, quase todos retribuídos à altura, contribuíam para a aproximação entre as duas. Com o tempo Isadora se convenceu de que solidão era o que realmente incomodava Beatriz. E que reconhecia em Isadora a amiga que há tanto procurava.

Numa quinta-feira Isadora teve que rever as suas considerações. Já não frequentavam o bar tanto quanto antes. O jantar serviria para comemorar os seis meses de relacionamento. Beatriz insistiu para que fosse em seu apartamento, onde teria à disposição uma de suas duas empregadas.

- Quer dizer que ele não quer conceder o divórcio?

- Não. Ganha bem. Me dá um carro novo todo ano. Do que aliás não preciso. Tenho uma renda normal, suficiente para mim e minha filha. Por falar nisso, adora Juliana. Acha que está tudo certinho. Será que é por isso que nada dá certo?, indagou finalmente Isadora.

- E você? O que pode fazer para que tudo realmente dê certo?

O jantar ainda não fora servido. As duas conversavam no mesmo sofá, com pelo menos uma garrafa de Cabernet Sauvignon na mesinha em frente já esvaziada. Isadora, desde que chegou notava a impaciência de Beatriz, disfarçada pelas jóias que usava e o elegante tecido de veludo de seu vestido justo. As unhas, como sempre, extremamente cuidadas. Nos lábios o complemento de uma maquiagem discreta, tornando-os ironicamente mais ameaçadores. Isadora não teve (ou não desejou) como evitar o beijo que se sucedeu. Embora acreditando ainda que ele pudesse revelar, apesar do encontro entre as duas bocas, um gesto de simples amizade entre elas. Algo além da amizade pode ser mais simples? O amor.

Antes de irem apressadamente para o quarto de Beatriz, sem se preocuparem com a refeição, Isadora ainda teve tempo de concluir que não fora o bar o responsável por aquele desenlace, apesar do efeito do vinho. Nem o Roger e a sua banda. Nem os dois policiais grandalhões. Teriam sido duas soluções à procura do mesmo problema?

Rio, 01/05/2009

Aluizio Rezende
Enviado por Aluizio Rezende em 09/05/2009
Reeditado em 09/05/2009
Código do texto: T1584001
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