VEM MORENA

Vem morena, vem

Vida útil, vida inglória, ingrata, insólita, insana, imbróglio de leva-e-traz, impaciência, intolerância, dor, inútil. Tudo isso e muito mais pra lhe dizer, morena, que a dor que sentes agora, já senti com muito mais força e afinco, quando me deparaste na porta, de quatro, chorando feito um camelo desmamado. Poderias ter evitado aquilo, ser mais romântica, confiada e confiante, amada e amante, amiga e compreensiva. Só porque sou homem, que jogo futebol nos fins de semana e rebento meus meniscos, não era motivo pra me abandonares em plena quarta-feira. Em plena quarta-feira, morena, no dia que combinamos ir ao cinema, lembras do filme? Nem lembras mais, por certo. A fúria, a intolerância, o mau-humor já detonou teu cérebro, já fundiu tua mente, confundiu teus sentimentos. Era um filme daqueles de amores transbordando, derramados, de paixões ardentes, de beijos pungentes em faces rosadas, de luzes de matizes doirados, e em cenários pastel. Havia até musicais, morena, e é raro um homem como eu, gostar de musical. Pensa bem, sou sensível até a flor da pele. Devia pesar estes meus bons sentimentos. Lembras da tarde em que salvei a velhinha que estava estirada em plena avenida, cheirando a grama, nariz enfiado entre paralelepípedos irregulares e crateras emolduradas de pasto? Sei que não deu certo, morena, mas lembras, bem que tentei. Passei de carro a mil pela avenida e vi a senhora despencar no chão, envergar-se como folha morta de outono, migrar no interior da terra, transformar-se em larva medíocre, alijada da dignidade, esperando a morte chegar. Claro que foi 99% de imaginação, mas sabes, morena, sou assim, sensível e criativo. Voltei em desabalada corrida, feito o Massa enfrentando a fórmula um e deu no que deu. A velha tinha se levantado com uma garrafa na mão e quase me jogara o vasilhame na nuca, não querendo ser internada porque não era louca. Eu declarei isso a ela, pelo contrário, tentei ajudá-la, dando a mão, revelando afeto. Mas que nada. Deixa, pra lá, morena. Não vais entender nunca o meu ponto de vista. Se sou socialista, tu és extrema direita, se sou holístico, és radical opus dei, se sou zen, és estressante e estressada. Nossos pinos não batem. Mas nossos corações sim, ah, estes batem em uníssono. Quando nossos corpos ficam assim, juntinhos, ressoam na mesma freqüência, ah, bouquet de vinho dissipando-se nos lábios, escorregando suave pela boca, amaciando a língua e o espírito. Não tenho dúvida, morena. Nossas bocas se encontram devagarinho, na mesma intensidade, sinto teus lábios molhados, beijando meu pescoço, assim, obscena, faceira, atrevida, mordendo-me a orelha, auscultando meus ouvidos, enquadrando meu coração no compasso que esperas. Também te sinto palpitar acelerada e teu peito arfar e teus seios juntarem-se ao meu corpo, afugentando os ruídos da rua, a poluição visual, as deformidades do dia. Ficamos assim, quietinhos, num pedaço de paraíso, temerosos que o tempo passe e que a mágica acabe. Somos assim, morena, unha e coração. Será que assim, que se diz? No nosso caso, sim. Sou mais coração e tu, mais unha. Aí, me deixas na sala como o bode expiatório, exibindo chifres, dando razões ao mundo de servir de exemplo a teus caprichos. Um bode expiatório aos teus pecados. Mas na quarta-feira morena, quando após o cinema, pegaríamos aquela pizzaria para passar as horas que restavam na noite rotineira de um casal suburbano, classe média, senso comum e meio medíocre. Na verdade, pizzaria, não. Sabes que detesto pizza. Mas todo mundo gosta. Gomo diz o Chico, naquela música, você não gosta de mim, mas sua filha gosta. Estou disperso, morena, delirando. Misturando as coisas. Você me deixou enfeitando a sala e destruindo a casa. Por que hoje, porque na quarta-feira. Podíamos pegar aquele barzinho de música ao vivo e conversar, colocar os pontos nos is, ajeitar nossas carências, ajustar nossas dificuldades. No barzinho? Vê morena, tu me confundes. Barzinho é coisa pra louco. Ninguém conversa, só ingere cerveja porque é de praxe beber até em posto de gasolina, gritar pra poder ser ouvido, entrar em fila de toalete e ouvir o cantor gritando um Fagner desalmado que mastiga as notas sem piedade. Eu por minha parte, finjo ouvir as conversas e dissimulo qualquer coisa, discutindo qualquer assunto e não dizendo nada. Tenho saudades daqueles bares em que o cara tocava um violão, baixinho, uma MPB tranqüila, emoção à flor da pele e a gente ouvindo solitário, mesmo a dois, o que a poesia balbuciava. Sei morena, que às vezes, não falamos a mesma língua, talvez porque nossos dialetos sejam diametralmente opostos. Eu falo galego e tu esperanto. Me querias o super-homem do Gil (quem dera, pudesse todo homem compreender, ó mãe, quem dera, ser o verão o apogeu da primavera e só por ela ser. Quem sabe, o super-homem venha nos restituir a glória, mudando como deus o curso da história , por causa da mulher) e eu seja apenas o malandro do Chico. Eu também sonhava contigo, na figura suave que paira sobre o solo, declarando amor, proclamando que com que com açúcar e com afeto, fizeste meu doce predileto pra eu parar em casa, mas de antemão sabias que os amigos me esperavam, me aquecias meu prato, beijavas meu retrato e me abrias os braços. Mas não somos nenhum desses, morena. Nem o Chico se enquadra, em nossos esquadros descalabros. Nem que nossos ideais se misturam nestas imagens, nossos corações não ousam lutar para abrir as comportas que o presente fechou. Me deixaste assim, louco de medo. Abandonado e bobo. Me roubaste um beijo e brincaste de menina em tempos de Capitu. Que pena, morena. Acho eu a vida nos levou ao invés de a levarmos. Fomos de roldão como a turba empurrada pelo exército amigo da governadora, fingindo ver o que não via, procurando saída onde não havia, sonhando com um futuro que já morreu. Somos assim, tu e eu, bobos, perdidos no emaranhado de sentimentos que não se coadunam com nossa realidade, assim, tão cheia de nós, que não fizemos e não ousamos desvendar. Se eu pedisse, tu voltavas morena? Se eu pedisse, desvendavas junto comigo o nó cego da insegurança, do medo, do pavor de ser um quando sonhamos ser dois? Se eu pedisse, abandonavas o jeito arrogante, bamboleando quadris nas calçadas estreitas e voltavas pra trás, ensaiavas uns passos e refletias que não sou o Johnny Depp, mas também não sou o açougueiro gordo da esquina, que espanca a carne sonhando em fazer amor com a mulher? Ele faz, a gente vive. Não chegamos ser o casal da Valsinha do Chico, nem dançamos nem nos amamos na praça. Mas precisamos um do outro pra não enlouquecer. Pelo menos, não hoje, morena, não na quarta, por favor, não deixa o tempo passar, o mundo gira, a quinta chega tão rápido. Na quinta não tem cinema, nem barzinho, nem passeio à tarde. Na quinta pode ser tarde demais.

Vem, morena, vem.

Gilson Borges Corrêa
Enviado por Gilson Borges Corrêa em 16/06/2009
Reeditado em 17/06/2009
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