Um Bouquet de Flores para Eulalia

UM BOUQUET DE FLORES PARA EULALIA

A sinuosa Rua de São Pantaleao, próximo a Igreja do mesmo Santo, estava encravado a edificação de um casarão com muitas janelas e somente uma porta. Tratava-se de uma morada inteira, do tipo que em épocas remotas se fazia, com o intuito de abrigar filhos e netos. Era como se fosse a junção de proteção e preservação familiar.

Naquela habitação enorme e arejada, além do Sr. João e Adelaide, moravam também os filhos do casal, João Filho e as gêmeas Rebecas e Eulalia.

Antes de João Filho completar a maior idade, a família enlutou-se com a morte repentina do Sr. João, que era funcionário da Receita Estadual. Passaram-se dois anos, João Filho, ganhou a maior idade, terminou os estudos secundários e, como todo nordestino de poucas posses, resolveu arriscar a vida em São Paulo. Comprou uma passagem de ônibus na agencia da Itapemirim que ficava na Rua de Santana e, na data prevista embarcou na própria agencia, já que naquele tempo a cidade não havia Rodoviária. Rumou a São Paulo, deixando para traz a segurança do lar o amor da mãe e a salutar companhia das irmãs gêmeas.

Naquele dia, Adelaide ordenou a Chica, serviçal da família, para que não varresse a casa. É que o conhecimento empírico daqueles tempos orientava que não se varresse a casa quando alguém viajasse para que o mesmo pudesse retornar.

Com a partida de João Filho, a morada ficou maior as gêmeas mais unidas que o comum e, Adelaide, sofrida com a viuvez precoce, tornou-se mais triste. Recolhida aos seus aposentos ou em idas diárias ao cemitério em visita ao túmulo do esposo e nas tardes sempre assistia a missa. Para as gêmeas a vida tomava rumo normal, os estudos, as missas dominicais, as orações diárias, os cuidados com a aparência, que aliás, as duas eram dotadas de rara beleza. Eram igualzinhas, não havia como diferenciar uma da outra a não ser pelas vestes. Tinham a pele aveludada de tão alva como a melhor linhagem das mulheres londrinas, cabelos aloirados e acetinados que luziam ao sol como se fossem fios de ouro, olhos de um castanho âmbar, digno dos grandes felinos indianos, elegância das corças em seu habitat natural e os lábios carnudos e bem delineados, esbanjavam sensualidade e desejo aos homens que tivessem o privilegio de um dia ver, já que nunca foram beijados.

Por onde quer que elas passassem , deixavam a marca impar de exuberante beleza e despertavam desejo até mesmo no mais senil dos homens, elas eram realmente as mulheres mais bonitas que pude ver durante a minha juventude. Embora nunca me tivessem dado ao menos a oportunidade de um olhar, a simples aparição de uma delas era o suficiente para aquecer-me de desejos e me fazer sonhar acordado embevecido pelo perfume suave de flores cálidas da primavera como se essa estação fosse permanente.

As gêmeas terminaram os estudos superiores, agora eram professoras. Ingressara, no magistério do serviço publico e lecionavam nas escolas publicas do Estado. João filho, trabalhou em um banco em São Paulo, depois de um longo período pediu demissão, somou o FGTS as economias que havia amealhado durante décadas e realizou o seu sonho, comprou um caminhão e tornou-se caminhoneiro, sem nunca ter constituído família, tendo passado toda a sua juventude como usuário dos serviços remunerados de prostitutas, sem nunca mais ter tido um lar, plantado uma arvore, ou deixado um filho que desse continuidade a sua estirpe, por falta de experiência com a nova profissão, acabou morrendo em trágico acidente na Regis Bittencourt, sem jamais voltar a ver a mãe e as irmãs gêmeas.

Adelaide, já cansada, sofrida, viuva ainda jovem, agora, trinta anos depois de sofrer a perda do marido, chorava agora a morte do único filho, que da terra natal e partira, de São Luís para São Paulo, em busca de dias melhores, nunca mais voltara e ainda encontrara a morte de forma trágica. Teria ele passado pela vida sem viver?

Foi demais para Adelaide, recebeu a noticia juntamente com uma caixa de papelão contendo poucos pertences deixados pelo filho, entre objetos pessoais havia uma foto tinta de sangue dele a mãe e irmãs, demonstrando assim a afetividade que tinha por elas, visto que a mesma se encontrava com ele na hora do acidente.

Após a missa de sétimo dia, Adelaide nunca mais foi a mesma, apesar de levar a vida de sempre, ficou ,mais calada, no cemitério podia ver o túmulo de João, mais João Filho, sabe lá onde havia sido enterrado, como indigente, a família não teve recursos para trazer o corpo ou o que restara dele e as lagrimas de Adelaide eram maiores e a dor no coração, insuportável, somente respondia ao que lhe perguntavam, passou a se alimentar cada vez menos e, sem que as filhas soubessem, deixou de tomar os remédios para pressão arterial e, não passaram-se três meses da morte de João Filho, Adelaide que pouco vivera, que cedo enviuvara e que perdera seu único filho, que nunca conversara com as filhas para ensinar-lhes as lições da vida, porque também não aprendera, que não sabia o que era um filme porque jamais fora a um cinema, e que não sabia dançar, que nunca vestira um maiot porque não conhecia o mar, somente o vira de longe e poucas vezes, que só sabia quando era carnaval porque passava na porta da casa dela os blocos em batucada e assim mesmo mandava que se fechassem a porta e janelas pois temia a invasão de bêbados. Adelaide, que durante toda a vida só conhecera um homem, João, de quem enviuvara, amanhecera morta, deitada de mãos postas como se agradecesse a Deus pela morte, em seu leito que durante anos fora a alcova de um casal que viveu juntos e se relacionaram como macho e fêmea, mais que não conheceu o amor...

Com a família quase extinta, afinal, dos cinco membros, três já haviam morrido, as gêmeas Rebeca e Adelaide que já passavam do 40 e abeiravam os 50, donzelas, mocas puras e virgens, jamais haviam beijado na boca ou tiveram namorado, pois tremiam e suavam as mãos gélidas sempre que algum homem delas se aproximassem, aposentaram-se e passavam o dia inteiro em casa. Rebeca a tocar piano, arte essa que herdara da mãe, Eulalia fazendo croché ou assistindo TV Chica, a velha empregada a cuidar da casa, mais já nem com tanto esmero como antes, afinal, a idade já não mais lhe permitia desprender grandes esforços.

A grande morada como se sentisse a falta dos moradores e começava a dar sinais de abandono, piso de madeira carcomido e desgastado pelo tempo, paredes com imensas manchas de mofo e com rachaduras e em alguns compartimentos o teto ameaçava desabar ante a ação avassaladora dos cupins, do forro, pendiam grandes teias de aranha. Descaso falta de dinheiro ou o próprio abandono tomara conta de três pessoas que só conheceram o cotidiano de uma família que fez opção pela singeleza de uma convivência solitária e que esquecera que a vida ao seu redor existia, e quem sabes, bons momentos poderiam usufruir...

Rebeca, Eulalia, outrora, jovens, belas e sensuais, que foram o sonho de serem namoradas, esposas e amantes de muitos jovens e bons rapazes, estavam velhas, enfeiaram, passaram pela vida e não viveram, jamais olharam para um homem com desejo, sexo era coisa para animal, elas não, enjoavam ao simples pensar e logo iam rezar para expurgar o pecado.

Distante de lá, há uns 3.000 Kms, Onofre, filho do sapateiro, que nos tempos da juventude morava na ladeira do mercado com os pais e uma penca de sete irmãos, que passara fome na infância e andava maltrapilho com roupas dadas por famílias mais abastadas do bairro, a exemplo de João Filho, cedo deixara a cidade e fora para São Paulo, tomando carona em caminhões, passando fome, frio e sede, a muito custo chegou em São Paulo, morou nas Ruas, trabalhou na construção civil, vendeu frutas e verduras, foi camelo e com esforço sobre humano, formou-se em agronomia, foi para Limeira, casou-se com Honorina com quem viveu 30 anos e nunca teve filhos. Ele como outros jovens na época, também sonhou um dia namorar uma das gêmeas e quem sabe, até casar. Era mulato, filho do sapateiro, feio, porém, agora era agrônomo, e lhe chamavam de Dr. Onofre, vivia com a esposa e apesar de seus quase 60 anos ainda sonhava com Rebeca e Eulalia, na vida existem coisa que a gente nunca esquece.

Honorina, acometida de meningite, é hospitalizada as pressas, apesar do melhor hospital e médicos, veio a falecer. Onofre, já aposentado, muito sofreu, estava só no mundo, seus seis irmãos dispersos no mundo, seus pais já falecidos, sua esposa morrera e até a xuxa, sua cadelinha de estimação, fugiu ou foi levada por alguém.

Trinta dias após o falecimento de Honorina, ele vendeu a casa e o carro, comprou uma passagem para o Nordeste e voltou a S. Luis, sua terra natal onde ele muito padeceu, passara fome, era maltrapilho e humilhado, mais agora, era o Dr, Onofre com gorda aposentadoria e dinheiro no banco.

Desembarcou no aeroporto do Tirirical, hospedou-se em uma confortável pousada no reviver e passeou pelo centro, leu os classificados dos jornais, foi a Rua grande, onde quando jovem nem podia ver as vitrines que eram repreendidas pelos vendedores, passeou pela Avenida litorânea e se divertiu como nunca. Mais tinha em mente um plano que era acabar com a solidão, comprar uma confortável casa no bairro do renascença, local que antes de sua viagem não existia, mais que agora era uma área nobre, ou quem sabe, até morar com as gêmeas se possível fosse, casar com uma delas. Antes disso, precisava consultar um médico para ver como estava o coração a saúde, tesão não era problema ele havia colocado uma prótese peniana antes de deixar São Paulo e em termos de machesa, ele comparava-se a um garoto de 20 anos, mais o coração, com três pontes de safena feitas no Unicor precisava de uma revisão, resolveu confiar na medicina maranhense e consultor o conceituado Dr. Bonifácio que após os exames constatou estar Onofre com a saúde perfeita.

Após ver vários imóveis, comprou uma bela casa no Renascença, a melhor mobília, um automóvel Honda Civic, estava ele pronto para casar de novo. Encheu-se de coragem, passou em uma floricultura comprou dois lindos bouquets de flores vermelhas, acionou o motor do carro e foi até a Rua São Pantaleao, parou em frente ao casarão e admirou-se com as condições de abandono em que se encontrava. Bateu palmas, no que foi atendido pela velha Chica. Pronto Senhor, o que deseja? Dona Chica, a senhora não se lembra de mim, eu sou o Onofre, o filho do sapateiro, no que Chica respondeu, sim, sim, agora eu lembro, mais como você está diferente, entre que eu vou lhe aprontar um café, Onofre entrou, sentou em um velho sofá sujo e rasgado, ele não entendia, queria perguntar, mais a educação paulistana que nos últimos anos tivera, recomendava a prudência. Chica voltou com uma pequena bandeja e uma chicara fumegante, aí, então, após sorve o primeiro gole, veio a pergunta, ele deixaria para falar nas gêmeas por ultimo. Como estão o Sr. João, Senhora Adelaide e João Filho. Chica começou a soluçar e contou a história, Onofre a ouviu cautelosamente e voltou a perguntar, e as meninas, Rebeca e Eulalia. Nesse momento, a comoção foi maior e um verdadeiro pranto derramado. Onofre, filho do sapateiro da ladeira do mercado, mais agora, Dr. Onofre um cavalheiro, amparou a velha senhora e enxugou –lhe o rosto com um lenço de pura ceda chinesa. Chica, se recompôs e voltou a falar. Há doze meses atras, Rebeca teve um sonho que estava casado e tinha relações sexuais com um belo jovem, acordou aos gritos, contou no café da manha a mim e a Eulalia e foi a Igreja se confessar, o padre deu a penitencia, a mesma teve ataques de histeria e vomito, se lavou com álcool, rezou muito, parou de se alimentar e se isolou no quarto, um dia lá pelas dez horas notei a sua ausência para o café, tentei entrar no quarto, mais percebi o mesmo se encontrava fechado por dentro. Chamei o vizinho que arrombou a porta e vimos a cena mais triste que se possa imaginar. Chica voltou a chorar, refeita, ela continuo: Rebeca, totalmente nua, dependurada pelo pescoço a uma corda amarrada em um armador de rede, seus olhos, pareciam querer sacar das orbitas e a língua para fora, tocava a ponta do queixo. Daquele dia em diante Eulalia emudecera, recolhera-se a intimidade de seu mundo particular, mais, voltara a cuidar melhor da aparência e a observar exterior através da janela como se esperasse um milagre. Onofre interrompeu a velha e perguntou onde está ela agora? Tomando banho, retrucou Chica. Então, Onofre pediu licenca, foi ao carro, pegou o bouquet de rosas vermelhas e voltou para esperar por Eulallia, que no banheiro já ouvira a conversa, foi ao quarto passou generosamente ao corpo leite de colonia, vestiu-se muito bem e foi para a sala. Deu um bom dia e sentou-se timidamente com os joelhos colados um ao outro e esperou.

Onofre, o filho do sapateiro da ladeira do mercado, agora, o Dr. Onofre, homem polido, inteligente e sagaz, tomou a iniciativa, levantou-se, curvou o corpo levemente Para a frente e disse: flores vermelhas para voce, bela Eulalia, a mulher que desde a minha juventude povoa os meus mais belos sonhos de amor. Eulalia levantou-se e balbuciou, oh, Onofre eu já passei do tempo de ser cortejada, estou velha demais para isso, mais me emociona saber que você desde sempre e até hoje nutre por mim esse sentimento tão lindo.

Onofre, que durante toda a vida esperou ao menos por um olhar e, que agora, estava no casarão, falava e tinha resposta, incrédulo, filosofou o amor nunca envelhece, porque ele é a essência da vida, estou aquí, para resgatá-la e a você também, Chica. Vamos providenciar o casamento, nos mudar para a bela casa que comprei para no Renascença e deixar para traz essa casa e as suas tristes lembranças, para começar a viver o amor que sempre quisemos e merecemos.

Um mês mais tarde o casamento deu-se na Igreja de São Pantaleao, além do celebrante de Chica elegantemente vestida e um largo sorriso de felicidade, também, assistira, um casal de amigos, vizinhos da nova casa. O casamento teve marcha nupcial e até Ave Maria interpretada por um cantor lírico, muito bonito, no automóvel, latas e garrafas de plástico amarradas no pára-choque traseiro e uma inscrição no vidro acima indicava: “Recém casados”.

A lua de mel foi em Fernando de Noronha, de lá, o casal esticou até Paris e passearam nos Champs Eliséos. O casarão da São Pantaleao ainda hoje ostenta a placa de uma imobiliária com os dizeres: Vende-se.

O casal de pombinhos, com idade hoje entre setenta e sessenta anos, possuem grande energia e uma sede de amor que muita das vezes os jovens não tem. Enfim, a felicidade está dentro de cada um de nos basta que queiramos realmente experimentá-la... pois chame, que ela vem...