Canto de Oxum

Não podia deixar o tempo escorrer por minhas mãos e não fazer nada.

Já se passara varias luas desde que tinha ouvido pela primeira vez aquele som repleto de esplendor que inundou completamente minha alma. Tentei fugir, de todas as formas, do impulso que me forçava a voltar e, até aos grandes espíritos recorri com fervor para me libertar dessa obsessão que alimentava meus sentimentos mais secretos, sem obter respostas.

Eram esses mesmos sentimentos que esculpia em madeira o medo que marcava cada centímetro de meu corpo mas, mesmo sentindo essa dor, eu não podia ficar sem a dose mortífera do som que enchia toda a vida. Eu não conseguia descrever aquele fenômeno que me transformava em algo alem do existente.

Sem conseguir pensar e nem agir, por um simples impulso conduzido por meu desejo, eu disparei correndo entre as arvores iluminadas pela aurora que já aquecia ardentemente meu corpo com os tímidos raios de sol. A manha preparara grandes alegrias e eu podia sentir isso em meu espirito que regozijava a cada passada na corrida sem fim. Os pássaros agitados, davam vida aquelas matas, e o verde das folhas vividas, refletiam o poder dos domínios da natureza que se expandiam pelos meus olhos que fitavam o horizonte infinito.

Eu podia sentir o frescor da umidade no vento que chicoteava minha pele, espalhando meus cabelos negros no rosto marrom avermelhado. A ansiedade aumentava ainda mais com o barulho do riacho que estava mais perto a cada segundo. Já não conseguia, aquela altura, raciocinar como homem adulto, sem prever as consequências daquele devaneio onde estava presa minhas vontades.

Quando finalmente eu passara pela ultima arvore da fronteira da floresta, já conseguia avistar a cachoeira imponente no inicio da clareira. O rio após a queda d'água dominava largamente das terras se transformando num berço de vida para diversos animais. As águas cristalinas refletiam o céu azul sem esconder as belezas presentes em seu interior.

Meus passos reduzidos quase me faziam parar no lugar, sem qualquer movimentação. Aquela paisagem não era nova aos meus olhos mas, meus ouvidos esperavam um som verdadeiramente novo. Eles já tinham ouvido o que procuravam mas, tinham certeza que seria algo indescritivelmente fantástico e sobrenatural.

Num quase sussurro, meus lábios se abriram para chamar sem pronunciar qualquer palavra. Minha pele, como se tivesse tocado no gelo, fez com que meus pelos se arrepiassem com a brisa que soprava sem direção. Um tremor leve possuía meus membros esperando o momento em que o tempo pararia.

Sem qualquer mudança aparente, o som da natureza começava a silenciar e, eu sabia, que estava acontecendo; o vento soprava mas as folhas que dançavam no dossel das arvores não faziam ruido algum. O mesmo ocorria com as aguas do rio que, mesmo sendo impulsionadas pela força da cachoeira, não se podia ouvir som algum.

Mas eu sabia que, mesmo a majestade da natureza não era capaz de deixar de se render aquela figura celeste maior do que todas as lentas da terra. O canto absoluto rompeu o silencio, fazendo com que a força que eu ainda tinha nas pernas, vacilasse e me fizesse sentar cambaleante no chão. Era o som que me enfeitiçava, que me chamava; era a canção mais bela, conduzida sem instrumento algum, apenas pelo ar que transbordava de vida todo aquele lugar.

Meus olhos já acostumados, procuravam loucamente pela origem daquele som, correndo cada espaço existente na paisagem paralisada pelo tempo imóvel. O luz e o calor estavam mais fortes, como se o sol estivesse no meio do céu, mas eu sabia que isso era impossível tendo o dia acabado de começar. Eu sabia o que começava acontecer.

Sentada numa rocha plana nas margens do rio, a figura do mais lindo ser celeste pairava na natureza intacta. Seus cabelos negros longos escorriam de sua face repousando em seus seios que fartavam seu colo resplandecente. Sua beleza inundava cada espaço de minha mente e todos os meus instintos me atraiam a ela.

Ela estava vestida com o sol; seu vestido cor de ouro iluminava tudo a sua volta, sem deixar espaço para qualquer sombra. Seus pés tocavam a superfície da agua e era possível ver os peixes mordiscando de leve, como se estivessem provando de algo saboroso, os seus dedos formosos. Em suas mãos estava um espelho com gravuras nas costas e pedras de diversas cores gravadas no ouro da moldura. Ela mirava incansavelmente sua imagem no espelho, mexendo nos cabelos e exibindo suas jóias surreais. Era a imagem da beleza, vaidade e poder.

Ali, eu não existia. Eu apenas via a própria deusa sentada em seus domínios. As palavras não existem para descrever a muda voz que se prendia na garganta. Muito mais do que se via, era possível ouvir o som do paraíso: o canto da deusa vestida de sol.

De seus lábios soava o canto que me fez ser dependente de sua beleza. Não existia nada sobre a terra que podia ser comparado com o cântico celestial que me aprisionava como refém de sua imagem além do natural.

Era aquele som que me arruinava; era aquele som que me destruía.

Mas era aquele som que me alimentava; o som que me fortalecia.

Eu era um homem apaixonado por uma deusa; a carne que lutava com o espirito.

Meus olhos não sabiam o que enxergar. Era confuso, não tinha explicação. Por um momento, eu era seu filho, que desejava se deitar nos braços de sua mãe celestial; em outro, ela era minha mulher e eu era seu homem, e meus desejos transbordavam minha alma sem ter onde conte-los.

Com um sorriso, a deusa das aguas doces e claras da floresta, me chamou para junto dela. Eu não podia acreditar naquele momento especial nunca ocorrido andes. Sem ainda ter forças, fui conduzido por entre as aguas do rio em sua direção, apenas com a magia de seu canto transcendente. Eu não tinha escolha alem de me deixar conduzir. Cada passo entre a agua era uma distancia a menos de meu sonho irreal.

Com um simples movimento, ela tirou de seu pescoço um colar de pérolas genuínas que brilhavam como estrelas. Com outro movimento, ela colocou o adorno agora em meu pescoço, sorrindo amavelmente para mim. Seus olhos fitavam os meus com doçura e paixão e sem dizer uma só palavras, segurou meu queixo e tocou meus lábios com os seus.

Numa reação natural e sem esforço, fechei meus olhos sentindo cada movimento de seus lábios naquele beijo arrebatador. Eu podia sentir o sabor de um mel ainda mais viciante do que seu canto, que me afogava em diversos pensamentos sem sentido. E num só minuto, meus olhos se abriram e já não encontrava mais nada.

A natureza se movimentava e tudo parecia natural, sem nenhum toque divino da deusa de meus delírios íntimos. Eu não podia acreditar que tinha acabado.

Para onde ela foi?

Será que estive em uma visão? Era apenas uma miragem?

As respostas não existiam. Eu apenas não podia viver sem a minha paixão, sem aquele amor.

Minha decepção era visível e minha ira fervia dentro de mim.

E quando eu já estava partindo infeliz, percebi algo diferente em mim: em volta de meu pescoço, um adorno pousava em meu peito.

Era um colar de pérolas genuínas, que brilhavam como estrelas.