A Sombra
Sua obstinação havia vencido o rigor dos invernos de outrora.E foram tantos!Esperava pacientemente.Buscava incessantemente o fim para tamanha inquietação do espírito.Enquanto buscava e esperava, a vida urgia.
Certo dia , em que sua inquietação atingira o ápice, levando seu espìrito ao inconfessável princìpio de agonia,chegara com inexplicável urgência ao sebo recém-inaugurado próximo à sua casa .Sem entender o motivo de tanta urgência, entrou a folhear um livro sem interesse aparente:
“O amor não mata ,mas te rouba a lucidez e embota o senso de realidade”.
Releu a frase achando-a familiar. Concluiu que de certa forma,todos dizem isso ou agem assim,cada um à sua maneira.Se retirou.
À noite,se recolhera cedo sob a modorra do outono.Sonho bizarro:andava pelas ruas quando principiou a tempestade.Ao buscar abrigo, fora atraída por uma estranha figura de sobretudo preto.Tentava envão ver suas faces.Instava com um gesto que o acompanhasse e ela o fez como que encantada.Entraram em um sebo.O estranho desapareceu na penumbra e retornou com um livro de capa preta com letras douradas : “ Sombra”
--Você precisa ler!
- Por quê?
_-Precisa se lembrar.
- Me lembrar de quê?
-“Sou como uma sombra sem corpo...e enquanto esse corpo perece e a alma padece,aos poucos se liberta para vagar através dos tempos,até que possa voltar em seu tempo, para enfim contemplar suas faces.”
- Eu não sei o que está dizendo!
- Não acredita mais no que escreve?
-Eu não escrevi isso!È só uma lenda.Ninguèm acredita.
Então ele estendeu a mão para que apanhasse o livro.;
-Ninguém precisa acreditar.Você precisa.È a nossa história.Por favor,acredite!
Ela estendeu a mão , mas ele se distanciava à cada passo que ela dava em sua direção,tentando desesperadamente alcançar o livro e ver seu rosto ,que parecia se misturar ao breu da noite.
Despertou percebendo que já era dia claro.Correu até o sebo, localizou o livro e o abriu aleatoriamente,lendo em voz alta:
“ Sou como uma sombra sem corpo...”
Sentiu o coração em sobressaltos:
-Oh,céus!-exclamou verificando em seguida se teria sido ouvida.Ninguém à vista.
Evocou mais uma vez o personagem da noite anterior.Suspirou.
-Sou ficcionista,não supra-naturalista -concluiu enfim encolhendo os ombros.
Ergueu os olhos e notou ao longe um vulto esbelto que a remeteu mais uma vez á noite passada..O personagem deixava seus sonhos e descia as escadas em passos escolhidos.A ficcionista segurou o livro com as mãos trêmulas e teve uns instantes de total inércia.Por fim desceu as escadas para pagar sua compra e indagou timidamente ao atendente:
- Conheceria por ventura o cavalheiro que acabou de sair?
- Não vi ninguém além da senhora.-respondeu apático
- Talvez ainda esteja por aqui - insistiu.
-Não há mais ninguém além de nós -afirmou agora fitando-a com curiosidade -sinto muito.
Com um misto de frustração e confusão,insistiu ainda com seu interlocutor, descrevendo com riqueza de detalhes a figura sem rosto que acabara de sair.
_Sinto muito -repetiu ele, pondo termo à palestra e rememorando a última estada de seu irmão,possuidor de todas as características por ela descritas, que voltaria em breve á seu convívio,vindo de outro país.
Ela entrou em casa ofegante.Suas mãos sequiosas folhearam o livro e seus olhos ávidos percorriam cada página como um novo e fascinante caminho para mundos lendários .Bebia cada palavra como se fosse o vinho mais antigo e precioso feito pelo próprio Baco.
Conforme se aprofundava no texto,este ia se tornando mais familiar.Finalmente reconheceu cada frase como sua e se encontrou de forma axiomática dentro da história.Evocações muito antigas emergiam à pouco e pouco ,tomando-lhe a superfície da mente como memórias confusas de outras vidas.Havia um guapo cavalheiro,que era a beleza de Narciso e a força de Hércules,somadas à bondade de seu coração e a candura de sua alma.A formosa dama que era a luz de sua existência,era uma camponesa que morava em suas terras; o que lhe faltava em cabedais, sobrava em graça e encanto.
No entanto, o terceiro personagem se fez presente com o intuito de cobrir de sombras a Terra do amor.A dama das trevas chegara como madrasta do belo mancebo, que era chamado Maurice, o mesmo passou a ser seu objeto de desejo e princípio de insanidade
Não havendo pois,a reciprocidade de sentimento, lançou-se a maldição aliada á aquiescência do pai do jovem enamorado,que o queria casado com uma rica herdeira da corte e logo incumbiu-se de expulsar de seus domínios a família da moça.Maurice e a jovem Tharsis nunca mais se viram...
A ficcionista Clara Gibbb,um tanto aturdida,interrompeu a leitura e repensou seu cepticismo.Fechou seu apartamento e pôs-se a caminhar pela praça principal do bairro,pois sentia-se sufocada por tantas informações e evocações.A dor da separação de Tharsis e Maurice queimava-lhe a alma,chegando à dor física e ela tentava envão entender o que se passava.
Esperava achar repouso sob o véu da noite .Ledo engano .Viu-se em outra época.Corria ao encontro de seu amado e, antes de se tocarem,ele foi contido por dos soldados de seu pai e ela foi arrastada por sua ama,de volta ao sombrio castelo onde vivia.Ao reconhecer no mancebo os olhos da gravura que trazia o livro,despertou com o coração sobressaltos:
- Os olhos de Maurice!
Não tocou no livro durante todo o dia.Entretanto,algo mais emergiria do âmago de sua alma.Das reminiscências ,a mais bizarra talvez.Nova sensação de época bem remota , em que corria segurando o livro de capa preta com letras douradas.Sua jornada parecia não ter fim,até sofrer uma queda brusca e perder a visão antes de conhecer o conteúdo do livro.
Clara Gibb correu `a estante e apanhou o livro retomando a leitura da maldição.
“ Passarão muitas vidas buscando um ao outro, mas não se encontrarão.Viverão em épocas diferentes e, se vierem na mesma época,sempre os separarão.Ele me odiará para sempre...mas terá o ódio de quem ama.È o círculo mortal!”
Abaixo,uma observação:
“ Sei de tudo ,grande amor,porque temos amigos.E onde estiveres,terás também notícias minhas’.
Ao término da leitura, pegou da caneta e anotou suas conclusões:
-A maldita precisa do ódio dele: quem odeia á quem o ama ,tem o ódio de quem ama...o círculo mortal!
Imediatamente,tornou à lembrança quem (ou o que) a envolveu de forma tão visceral nesta incrível lenda.
- A sombra!
Voltou ao sebo onde teve informações acerca da origem do fatídico livro e passou a conversar frequentemente com o Sr.Robin , dono e único atendente .Aceitou de bom grado o convite para a re-inauguração do estabelecimento que teria uma livraria anexa com as últimas novidades do mercado editorial.
-Faço questão de apresentá-la à meu irmão.Como lhe disse , ele andou fazendo pesquisas sobre esse livro,e com essa mesma paixão.Jura que o exemplar que tem é o mais antigo do mundo.
Sentou-se defronte de seu computador, e mais uma vez se viu diante de um bloqueio criativo.Sua mente lhe sugeriu o vulto que outrora lhe surgira em sonho e visitara também o sebo.
-A sombra!_ falou à seus botões -porque não aparece mais? Eu li o livro ...e agora? O quê quer?
E assim alguns dias se passaram...
Infelizmente Clara Gibb não esteve na re-inauguração do sebo ,pois fora acometida de repentina enxaqueca.Decidiu voltar no dia imediato , se desculpar com o Sr.Robin e conhecer seu irmão, que o estaria auxiliando enquanto estivesse no país.
Antes porém, faria sua caminhada matinal.Mas , ao passar pela rua do sebo avistou ao longe , um vulto que parecia ser de um cavalheiro de vestes negras.Instou seu coração que postergasse o passeio para seguir aquele chamado e ela o fez.Seguia-o atentamente com os olhos.Ele ia de uma janela para outra em direção às escadas internas que ela já conhecia,para chegar à entrada principal.Ela caminhava com vagar e com os olhos muito atentos.A sombra ia aos poucos tomando formas.Um riso bizarro e encantador,um olhar plácido iluminado, tomaram de vez as faces simétricas do inusitado personagem agora reconhecido depois de tantas vidas de desencontros e desencantos.
Olhou como que incrédula e permaneceu imóvel por algum tempo...tempo era mero detalhe.Principiou um sorriso.Desistiu.Limitou-se à estudá-lo.Perdeu-se por um momento em amargas conjeturas que tentavam desviá-la do caminho fazendo-a duvidar de seus olhos...e dos olhos da alma.Ele imóvel.As nuvens densas descortinaram frágeis raios de sol que brincavam em seu rosto, burilando suas feições harmoniosas com novo brilho e cor.
Ela subiu o primeiro degrau e parou.
Prosseguiria sem saber o que faria ao chegar.O que diria.O que diriam.Continuou agora em passos rápidos.
Quando finalmente se abraçaram,quase se podia ouvir seus corações batendo como um só.Enfim, se contemplaram face- à -face,e se tocaram como se suas almas,cansadas de vagar pelo tempo,retomassem seus corpos por entender que era chegado o momento de serem um só, em perfeita harmonia e plena felicidade.
Ela fechou os olhos para dizer em pensamento:
-“ Ninguém acreditaria”.
Ele respondeu:
-Ninguém precisa acreditar.Nós acreditamos.
-Sim.È a nossa história!
Silas Santos(05-03-09)
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