O Retrato Amarelado

Na varanda, deitada na rede, observava atentamente o retrato daquele que foi a mola mestra daquela relação. Quanta lembrança! Teve vontade de conversar com aquela figura amarelada pelo tempo, estampada naquele papel. Sabia que não obteria nenhuma resposta; seria um monólogo. Mas estava preparada para monologar com aquele semblante, que outrora, tantas vezes a fez voltar à vida; a se sentir mulher, mãe, avó e amante. “Por que tudo que se ama tem início, meio e fim?” Ela não cansava de se interrogar.

Não bastasse fazê-la mulher, mãe, avó e amante trazia-lhe sempre a alegria de viver; como num toque de mágica. “Lembra o primeiro dia?” – monologa com os olhos grudados no retrato... “Eu era uma mocinha vinda do interior e você um rapaz pronto e decidido; galanteou-me com maestria – nem precisava. O namoro tardou um pouco dado a minha ingenuidade; - era o que eu mais queria -, mas eu... Você ajudou-me a vestir melhor, apreciar com mais sensatez as coisas belas e a valorizar o trabalho como dignificação do homem. Enamoramos por curto período; eu precisava de você do meu lado... Mas meu pai com ares de arrogância, vasculhou-lhe a vida: emprego, família e, claro, algum dinheiro. Não teve argumentação que nos impedisse de unirmos.”

O casamento foi na primavera, primeira quinzena de outubro de 1926. Os ipês amarelos enfeitavam toda a cidade; espalhavam-se flores por todo o campo; a cidade menos evoluída que hoje exibia imensos campos em redor. Os transeuntes exprimiam fisionomias alegres; indo e vindo em ruas curtas. Todos se conheciam. À véspera de um evento qualquer toda a população já tinha conhecimento. E não foi diferente no dia do casamento de Hanna Haber e Ana Augusta, filho do libanês e do fazendeiro Osmar Machado.

Hanna Haber, nascido em Beirute, no Líbano, veio para o Brasil com três anos de idade e o que sabia sobre o Líbano foi ensinado por seu pai. Não conheceu a terra natal; o trabalho na padaria lhe era mais importante. Trabalhou com o pai até os 24 anos, época em que se casou com Ana. O pai, contudo, morreu um ano após seu casamento, deixando-lhe toda a herança por ser filho único e órfão de mãe. Embora se dedicasse tempo integral à padaria, ainda sobrava-lhe tempo para mimar Ana Augusta, seu grande amor; companheira de todas as horas.

Vieram os filhos: Rafael Haber e Haja Haber. E ainda assim, Hanna conseguia dispensar atenção a todos, especialmente a Ana. E depois os netos.

- Vó, você quer chá? – pergunta a neta Mariane.

- Sim, querida, aceito uma xícara!

Mariane, 12 anos, pré-adolescente, não passava uma semana sem visitar a avó. Corre à cozinha prepara o chá e leva para a avó – toma uma xícara para agradar; não gosta muito -, sentando-se à sua frente:

- Vó você acha que eu já posso namorar? – indaga Mariane com gestos mais infantis que de uma pré-adolescente.

- Acho que você já pode sim. Mas depende do que seu pai pensa, querida! Os tempos mudaram; na minha época era uma idade boa... – Riu demoradamente de si mesma por estar falando aquilo com uma criança.

Terminaram o chá e Mariane avisou-a que iria encontrar umas amigas na pracinha próxima. Ana voltou-se para o retrato; o monólogo.

“ Lembra Hanna quando você apesar de toda sua ocupação me convidava para tomarmos sorvete? Ou quando íamos ao cinema? – Ontem eu fui tomar sorvete, aliás, tomei o mesmo: baunilha com frutas – Caio levou-me. E por falar em Caio, não posso esquecer que você devolveu-lhe a vida. Foi quando você afastou-se da padaria e propôs que o livraria do maldito vício das drogas; levou-o a clínica, acompanhou todo o tratamento; ia todos os dias visitá-lo. E conseguiu. Hoje, livre do vício, abstém-se, ainda, de cigarros e bebidas; prepara-se para casar com uma garota linda – outra neta pra nós. E, claro, estarei firme nesse casamento, inclusive representando você. Você conseguiu tudo, querido! Tudo. A saudade que sinto de você é diferente da maioria que é sempre ladeada de tristeza - sinto muita alegria. Sou feliz por tê-lo conhecido; fez parte da minha vida, e sempre o fará.”

Mariane entra às pressas interrompendo o monólogo de vó Ana, que apertando o retrato contra o peito, levanta os olhos e pergunta-lhe:

- O que foi Mariane? Algum problema, querida?

- Nada vó! Vou ao banheiro e depois falo com você!

Ana aproveitou o ensejo e foi até à cozinha comer alguma coisa; sentia fome. Lanchou e voltou à sua rede, a qual não desprezava. Mariane continuava no banheiro.

- Como estou vó? – perguntou Mariane postando-se em frente à avó.

- Mas você está muito linda Mariane. Já a considero uma mocinha. E como em toda mulher a maquiagem transformou você numa princesa.

- Vó, posso voltar para a pracinha e bater papo com as minhas colegas?

- Sim Mariane! Claro que pode. As moçoilas precisam nos finais de semana se juntar e lançarem olhares aos rapazotes. É sadio. Faz muito bem para a alma e para o coração. Aproveite querida! – Dê asas à vida!

Mariane saiu esbaforida esbanjando beleza e contentamento. Ana em sua rede, o retrato preso na mão esquerda; suspirou enquanto preparava o prosseguimento do monólogo. Ajeitou-se e em risos dirigiu-se a Hanna:

“ Você viu a nossa neta? – Está procurando sentir o mesmo que eu sinto. A alegria estampada em seu semblante era de uma mulher feliz; não uma pré-adolescente começando a conhecer a vida. E você, Hanna é parte de tudo isso. E é creditado a você a faculdade em ter proporcionado à minha família uma felicidade espontânea, de respeito e amor. Lembro-me de uma única vez tê-lo visto extremamente nervoso: - foi na entrada do cinema, certa vez, em que um homem por hábito chamou você de judeu. Mas tamanho foi o seu arrependimento que após a sessão você o procurou e humildemente se desculpou, fato, aliás, que fez com que este senhor se tornar nosso fiel amigo.”

Ana sentia-se abafada embora todo o monólogo tivesse lhe proporcionando o maior prazer. Ergueu-se da rede, foi ao banheiro passou água no rosto, andou um pouco, tomou água. Mas queria a todo custo continuar o monólogo. Afinal, tinha ainda muitas coisas para contar a Hanna. Muitas coisas.

Momentos depois recuperou-se do mal-estar, retornou à varanda. Desta vez preferiu uma cadeira acolchoada – presente de Hanna – muito confortável. Assentou-se. Para reiniciar o monólogo com Hanna não precisava de ensaio: “Sempre fui importante pra você. No dia em que sua vontade de viver sucumbiu-se ao desfalecimento, você pediu que me levassem para estar ao seu lado. E lá permaneci, entre o choro contido e a dor, vendo-o inerte em meus braços, certa que fisicamente não mais o teria. Como naquele dia, Hanna, estou sentindo-me amolecida...”

Mariane entra saltitante e dirige-se a avó:

- Vó! Estou muito feliz! – Meu primeiro beijo!

- Vó! ... Vó!... Insistiu Mariane.

Mariane para em frente a avó. Observa-a. Vó Ana tinha um semblante afável; um sorriso retraído e o retrato junto ao peito...