Da grande paixão que o Senhor M sentiu pela Senhorita S

Da grande paixão que o Senhor M sentiu pela Senhorita S

Esta história de amor poderia como quase tudo na vida, ter acontecido ao contrário, mas não foi assim. Ela aconteceu mais ou menos como segue abaixo.
O amor do Senhor M pela Senhorita S começou em um lugar curioso, mas como todas as coisas têm que começar em algum lugar, esta história começou em uma escada de rodoviária.
Vou resumi-la, porque a história é um pouco longa: Certa manhã, indo ao trabalho, descendo meio apressado pelas escadarias da velha rodoviária o Senhor M viu pela primeira vez a Senhorita S; e sem nenhum exagero o Senhor M, parou, ficou estupefato, nunca em toda a sua vida tinha visto uma mulher tão encantadora. Encanto parece ser a palavra certa. Se pensarmos que “S” pode querer dizer serpente e que a própria letra “S” lembra uma serpente e como também se diz que algumas serpentes encantam com os olhos suas vítimas antes de devorá-las, a palavra encantamento é a mais adequada para tal momento.
O que o Senhor M sentiu pela Senhorita S foi amor, paixão a primeira vista.
Enquanto o Senhor M flutuava, a Senhorita S passou por ele sem ao menos olhar para os lados.
Vou deixar claro que o Senhor M já não era nenhuma criança e, óbvio, já tinha visto outras mulheres bonitas, algumas inclusive tinham passado por suas mãos e dividido sua cama.
Mas! E na vida perece que sempre existe um mas, ou um contudo, ou mesmo um entretanto; apesar de conhecer muitas mulheres e já ter se apaixonado muitas vezes, o Senhor M ficou totalmente caído pela Senhorita S. E tudo poderia ter terminado aí. Pois a Senhorita S já estava longe seguindo seu caminho.
O Senhor M ficaria pensando na mulher por algumas horas, coisa que o dia de trabalho e as contas a pagar fariam esquecer.
Contudo, três dias depois o Senhor M passeava pelo centro da cidade quando em frente a um grande magazine ele a viu novamente e o encantamento, a violência da paixão o atropelou e ficando parado no meio da multidão também foi atropelado por uma velha gorda e sua não menos gorda filha.
- Desculpe, deve ter dito o Senhor M, ele era e ainda é muito educado.
Quando pode virar-se, cadê a Senhorita S?
Evaporara-se na multidão. O Senhor M tentou procura-la, recordava-se que diferente do cinza que estava usando nas escadarias, usava hoje uma blusinha branca e uma saia comprida, vermelha com flores brancas.
Procurou bem por meia hora e nada! Frustrado, encantado, enamorado o Senhor M desceu a rua, entrou em uma travessa onde sabia existir um sebo, iria procurar um livro para ler a noite.
Entretanto quando se dirigia para a estante das Humanidades, eis que o Senhor M vê a Senhorita S folheando um livro.
- Bom, aí também já é demais, o destino parece fazer de tudo para colocar essa mulher em minha frente, pensou o Senhor M, lembrando que lera em algum lugar sobre uma conspiração cósmica que atraia os seres mais ou menos parecidos.
E parecia que estava mesmo, aliás, pensando bem, esta história lembra um pouco algumas comédias românticas, açucaradas, principalmente as norte-americanas. Mas o desfecho história vai lembrar mais um filme francês.
- Bom dia, gaguejou o Senhor M, você sabe onde encontro Garcia Márquez?
Ela nem se dignou a olhá-lo, apenas apontou com os dedos.
- Pergunte apara aquele moço lá da frente, ele parece trabalhar aqui.
Como o Senhor M não desistisse facilmente e percebendo que a Senhorita S folheava O Perfume, comentou:
- Eu já li este livro.
Silêncio.
Silêncio.
Foi quando a Srta. S olhou para o Senhor M pela primeira vez. Quando ela pousou sobre ele dois grandes olhos negros, sorriu (a senhorita S era um bocado bonita, e ainda é) e passou as mãos pelos cabelos castanhos, o Senhor M teve a mais absoluta certeza de que estava perdido.
- E o que achou?
O Senhor M quase perdeu a voz.
- Não gostei, parece um livro de terror.
- Eu também já o li, estou apenas folheando, mas eu gostei, achei fascinante o modo como uma pessoa feia e inescrupulosa, torna-se encantadora a partir de algum dom. (O Senhor M poderia ter aprendido alguma coisa com essa frase)
- Pode ser, disse ele, mas ele era um assassino.
A partir daí conversaram muito. Saíram do sebo sem Garcia Márquez e sem Patrick Suskind, mas isso pouco importa.
Descobriu-se então que a Senhorita S, embora não parecesse, tinha vindo do interior para trabalhar. Adorava literatura, música portuguesa, cinema, caminhada, tudo que o Senhor M também gostava (a exceção é a música portuguesa, mas, para isso, não se deu muita importância) e a Senhorita M parecia ser a mulher que ele sempre procurou.
Resumindo mais ainda a pequena história. Ele estava completamente bêbado de amor e paixão, e ela, mulher astuta, esperta, tranqüila, sabendo do seu poder de sedução sobre o Senhor M aproveitou-se disso. Nunca namoraram, não no sentido que geralmente se da a essa palavra. A Senhorita S nunca ofereceu os lábios, sequer as mãos, nem abriu as pernas muito menos o coração para o Sr. M. Mas usou-o direitinho para suprir sua solidão na cidade grande, pois o Senhor M além de muito simpático, também era um intelectual, conhecia cinema e literatura como poucos, ao que parece não conhecia muito da alma humana.
Uma vez, assistindo a um pôr-do-sol, com todas as danças das cores, dos ventos, dos cheiros da terra, o Sr. M. não resistiu ao momento mágico, meteu os pés pelas mãos e se declarou a Senhorita S, e levou um não, ele apenas servia para ser seu amigo.
- Então um amigo de alcova pelo menos?
- Não, e é melhor não insistir, senão nem isso.
Notem como atrás de um rosto bonito, até angelical, esconde-se uma pessoa segura de si e, a meu ver, muito malvada. Porque ela também precisava do Senhor M, nunca permitia que ele fosse realmente embora.
O pobre Senhor M sabia que estava vivendo o ideal do amor romântico, sabia que isso é uma grande besteira, mas estava encantado, a Senhorita M também sabia, mas de uma forma sutil deixava-o preso.
Um belo dia, quando o interesse da Senhorita S pelo trabalho na cidade grande acabou; a brejeira decidiu voltar para o interior, sem um beijo, sem uma carícia, sem nada, nem adeus.
Não deixou endereço, telefone, sequer e-mail. Simplesmente foi embora, sua passagem pela grande cidade era apenas mais uma página do livro da sua vida que ela virava.
Mas eu soube dela, ainda está só, a solidão parece ser extremamente importante para ela, nunca se casou, também não passou pelas delicias e dores da maternidade, tem um bom cargo público e um cão. E fez algo que chocou toda sua família: uma pequena tatuagem de uma fadinha no ombro esquerdo, claro que atrás, a Senhorita S sabe muito bem que pode enjoar da tatuagem e como não é tão simples removê-la, melhor que só possa vê-la pelo espelho. Soube também que de vez em quando vai ao teatro e ao cinema e lê, lê muito.
E quanto ao Senhor M?
Abobou-se completamente, perdeu um pouco de vontade pela vida, também nunca namorou outra mulher. Mas mantém e faz mais amigos, também lê muito e também de quando em quando vai ao cinema.
História de amor boba essa, mas é a única que conheço, como já disse, poderia ter sido o contrário, mas não foi.