Eles na chuva

Chovia muito. Não aquele muito destruidor. Mas aquele muito o suficiente para lavar a alma. Estavam eles à pé na estrada. A estrada era deserta, estreita e margeada de verdes. Tanto que a própria chuva, que lhes vinha como uma bênção, parecia também verde. Era feriado nacional, Dia de Nossa Senhora Aparecida. E também Dia das Crianças. Eles eram, no fundo, ateus, porém, no fundo, crianças. Desta forma pensavam no feriado como um dia de brincar. Uma ocasião pra levar, finalmente, depois de tantas farsas e armadilhas do dia-a-dia, a vida a sério.

Caminhavam eles sob as águas incessantes, lado a lado. Nem tão perto – ele andava próximo à margem esquerda da estrada, enquanto ela à direita. Roupas completamente encharcadas. A tarde era escura e seus olhos viam o que lhes parecia muito claro: que era muito bom caminhar naquela chuva, e era muito bom que estivessem lado a lado. Estavam em meio a um instante de mágico silêncio, onde apenas sorriam, como expressão do que ninguém duvidaria ser um momento de genuína felicidade. O silêncio que guardava suas bocas naquele instante viera após muito terem conversado. Não lhes faltava assunto. Aquele silêncio era uma opção. Contudo, testavam telepatia.

Algo que viram os fez parar. Avistaram logo à sua frente. Estava escrito com tinta spray branca no asfalto preto a frase “Eu te amo”. Aquilo, aquela inscrição quase indelével, os havia prendido os pés no chão, feito doer os músculos das coxas. Seria impossível dar mais um passo adiante sem antes contemplar aquela frase no piso da estrada, mais poderosa que qualquer aforismo, do que qualquer teorema, do que qualquer constatação físico-quântica, do que qualquer psicologismo, do que qualquer prece. Mais do que algo a ser considerado, aquilo estava ali como um corpo estendido no chão negro, um corpo vivo, de palavra viva a se exprimir como um ser vivo e falante e com super-poderes – com poder de paralisação. A pergunta inevitável e inicial era “quem escreveu aquilo?”. Algum casal andarilho, como eles, teria feito a cândida pichação. Era estranho pensar que alguém tivesse levado um spray de tinta àquelas bandas. Estaria o estranho e misterioso casal já pré-determinado a escrever naquele asfalto? Podia ter sido em um tronco de árvore. Mas era asfalto. É foda. Só quem ama a vida, ama alguém, ama a idéia do amor, saberá a sensação do que (é) foi ser capturado pela frase “Eu te amo” escrita num local deserto como aquele. Ainda mais quando se está ao lado de alguém com quem se compartilha algo tão certo quanto a matemática doida do amor, onde um mais um são mil. Onde o que se tem em mente quando se mira o outro ao lado é a imagem de alguém perfeito para estar ao seu lado, apesar de todas as dúvidas da existência e das prisões cotidianas com suas grades de papelão.

Do alto do céu, se via o casal impávido e imóvel, com suas cabeças a olhar para o solo. Parecia a cena de um crime com peritos ao redor. ... Era a cena de um crime com peritos ao redor, confusos, perturbados, encantados e, paradoxalmente, satisfeitos com a dúvida advinda com a inscrição contemplada. Uma cena onde os peritos são cúmplices do crime. Deixaram então, depois um tempo, os seus olhos o chão. Olharam-se então, horizontalmente, os olhos de onde irradiava eletricidade. Sorriram-se. Abraçaram-se. Beijaram-se. Uma fissão nuclear de calor no mergulho da tarde fria. Chovia. Parou de chover. Era Dia das Crianças.

*