Sobre Tempos Mais Inocentes

Ninguém nasce vampiro, torna-se vampiro, por isso não há crianças sanguessugas, por exemplo. No entanto, há parasitas anciãos, ou porque vieram a tornar-se vampiros dessa raça nessa idade, ou porque são, de fato, muito antigos – e bota antigo nisso! Ao contrário do que se pensa, os vampiros não são imortais, só têm um metabolismo diferente do nosso, as células se renovam com maior freqüência, e por mais tempo, podendo, dependendo da raça, e do metabolismo de cada indivíduo vampiro, levar centenas, ou milhares de anos, para perceber-se o ciclo natural, de “nascimento”, envelhecimento e morte.

Mesmo quando vampiros e humanos unem-se, a criança que nasce dessa união não é vampira, e sim humana, talvez com algumas características herdadas do pai, ou mãe, vampiro, como o envelhecimento lento, resistência a doenças, cura rápida de ferimentos leves, ou não tão graves, etc. Mas não se alimentam de sangue humano, não se conectam psiquicamente a viciados, nem necessitam manter uma vida sexual extremamente ativa.

Gabriel Youth, portanto, nasceu perfeitamente humano, no mês de abril de 1893, início de primavera no hemisfério Norte – embora isso não signifique muita coisa – em Manchester, Inglaterra. Seus olhos não eram totalmente negros, eram apenas castanhos escuros, conforme a luminosidade, ficavam um pouco mais claros, da cor do mogno. Filho de sir Sebastian Youth, cavaleiro da Rainha, nos tempos vitorianos, segundo o que sabia, era da aristocracia, e militar, serviu ao exército nas antigas colônias, na Austrália, África do Sul, Hong Kong, Índia... na verdade, não conheceu seu pai, só sabia de Sebastian o que sua mãe, Helen Blackmore, havia lhe contado. Quando completou cinco meses, seu pai estava, ao que parece, no Egito, e morrera em serviço. Era o que ela havia lhe contado.

Helen Blackmore também era da aristocracia inglesa, filha de irlandeses, seu pai também fora militar, também esteve nas colônias, nasceu em Belfast, no tempo que não haviam duas Irlandas. O nome dele era sir Jasper Blackmore. Após ficar viúva, Helen voltou para a casa dele, em Manchester, e foi ali que Gabriel cresceu. Tinha primos e primas, filhos dos irmãos e irmãs de Helen, da família do pai, não conheceu ninguém, também foi sua mãe que lhe contou, Sebastian fora filho único, e seus pais haviam, avós de Gabriel, morreram há anos, ela mesma não chegara a conhecê-los. Mas os primos e tios moravam na zona rural da Inglaterra, e da Irlanda, só vinham à casa de sir Jasper nas festas de fim de ano, fora das festas, somente em julho de 1908, quando faleceu sua avó, Evelyn.

Os avós e a mãe eram profundamente católicos, de ir à missa, pagar o dízimo da igreja, ajudar a preparar festas dos santos das paróquias, ou novenas, vovó Evelyn costumava rezar o terço todas as noites, antes de recolher-se, e até ela falecer, Gabriel acompanhava-a. Helen lhe dera esse nome, pois queria que o próprio arcanjo lhe abençoasse e por ele intercedesse. Quando era pequeno, lembrava que sua mãe o chamava de anjo, e isso às vezes lhe incomodava. Seu avô, sir Jasper, tinha um olhar estranho, ele lembrava-se disso também, e não concordava muito com a forma como a filha chamava o neto. Isso também lhe incomodava, mais ainda!

Em 1912, estava terminando a escola militar, e tencionava seguir a carreira do avô, no exército, até conhecer o avião. Aeronaves estavam sendo testadas para uso militar, e Gabriel apaixonou-se ao vê-las voar. Foi sua primeira paixão, e não descansou até conseguir a oportunidade de aprender a pilotar uma daquelas máquinas. Adorou sentir o vento nos cabelos, ver a cidade toda lá do alto. Nesse mesmo ano, ele conheceu sua segunda paixão, na forma de uma bela mulher, com ar angelical, olhos negros que transmitiam serenidade, como se fosse um lago de águas calmas, cabelos castanhos, lisos, compridos até o meio das costas, um belo sorriso um tanto tímido... Gabriel a viu numa livraria, no centro da cidade, numa chuvosa tarde de segunda-feira. Apaixonou-se por aquela mulher assim que a viu. Foi rapidamente, estava passando pela frente da pequena loja, apressado, o guarda-chuva meio despencado não estava dando conta. Naquela noite, após recolher-se a seu quarto, não conseguia concentrar-se na leitura do Evangelho, só pensava naquela bela moça, na calma e tranqüilidade que vira em seus olhos, negros e profundos como um lago, nos cabelos castanhos, lisos, no jeito como mexia neles com um gesto suave de suas mãos finas, o sorriso doce, meio tímido, que se desenhava em sua bela boca de lábios rosados.

Ele demorou a rever aquela bela criatura, e quanto mais tempo passava, mais pensava nela, mais pensava em como gostaria de revê-la, de quem sabe aproximar-se dela...

Por o que ele achou ser uma feliz coincidência, num domingo ensolarado de verão, na missa da manhã, chegou um pouco atrasado, então sentou-se num dos bancos das últimas fileiras, exatamente ao lado da jovem que vira há uma ou duas semanas. Ela parecia absorta na leitura do livro de orações, e não percebeu que ele havia se sentado a seu lado. Quando o padre Johnson pediu que todos se levantassem, para o cântico de saudação ao trecho do Evangelho que seria lido, ela levantou-se, e então percebeu Gabriel ao seu lado. Ele estava sem a folha de cânticos, e timidamente ela ofereceu a sua, para que pudessem acompanhar a música juntos. Gabriel, pela primeira vez, teve de fazer um esforço sobrehumano para manter a concentração na folha de cânticos, sentia o frescor perfumado de sua pele, de seus cabelos, sentia também o hálito perfumado dela, entre uma e outra estrofe não resistia e levantava o olhar, para observar a beleza daquele rosto de pele branca, de ar puro e angelical, ou o que ele considerava como tal.

Após a missa, saíram a caminhar juntos, vagarosamente, aproveitando o calor, o sol, o céu limpo... era tão raro um tempo assim, que todas as pessoas aproveitavam, saíam e desfrutavam o dia, mesmo se não fosse domingo! Conversaram, Gabriel contou sobre sua vida, seus planos, pensava em trabalhar, juntar dinheiro, e então comprar um avião, talvez inaugurar o serviço de correio aéreo, quem sabe. Ela riu, seus olhos davam a entender que tudo o que ele dizia lhe interessava. Depois ela falou tudo de sua vida, chamava-se Ninna Stepford, estudava para ser normalista, havia se mudado há pouco tempo para Manchester, era de Blackpool, uma pequena cidade litorânea em Lancashire, estava morando com uma velha tia, nos subúrbios da cidade. Seu sonho sempre fora lecionar, ser professora, era essa sua intenção. Quem sabe, ir às colônias, ensinar inglês na Índia, ou China, ou as novas ilhas da Oceania, talvez Bahamas, ou Jamaica... Gabriel a observava falar, bebia-lhe cada palavra, o som da sua voz, estava cada vez mais encantado por ela.

Passaram a encontrar-se todos os domingos, nas missas da manhã, chovesse ou fizesse sol. Conversavam por horas. Num domingo, encontraram-se na missa, e quando Gabriel foi deixar Ninna em casa, já era passado das 6h da tarde, já estava anoitecendo. Uma velha senhora, de cara amarrada, encontrava-se na soleira da porta da casa, aparentemente esperando pela garota, que com um sorriso doce e sua voz mansa, e levemente rouca, pediu-lhe desculpas e assegurou que aquilo não iria mais acontecer. Resmungando algo como “é bom mesmo...” a velhinha virou as costas e entrou na casa, arrastando as pantufas, claudicando um pouco da perna esquerda, e os deixou sozinhos no portão de acesso. Voltando-se para o rapaz, pousou a mão suave e fina sobre a dele, olhando-o nos olhos, com seu sorriso puro e angelical, fazendo o coração dele disparar, suas mãos suarem, Gabriel sentiu um leve formigar nas orelhas e tinha quase certeza que seu rosto estaria vermelho como um pimentão. Num tom de desapontamento, ela disse “Tenho que entrar... minha tia vai ficar mais aborrecida comigo!”

Gabriel murmurou um pedido de desculpas, que foi interrompido com um gesto graciosamente banal de Ninna, colocando um dedo sobre os lábios dele, num pedido de silêncio. “Eu adorei passar o dia todo com você, Gabriel! Adoro nossos encontros...” Ele pegou em suas mãos, segurou-as entre as suas, sorrindo também, disse que também adorava vê-la. “Desde a primeira vez que te vi, você estava na livraria, estava chovendo, fazia frio... mas desde aquele dia, eu conto cada hora, cada minuto, passo a semana toda esperando apenas o domingo chegar para ver você de novo, Ninna... meus dias têm sido sem graça, pois não posso ver você todos os dias...”

Ela riu, um tanto encabulada, desviou os olhos dos dele, mexeu no cabelo daquela forma que lhe era tão peculiar, e que o encantava ainda mais. “Ouvindo você falar assim”, comentou num gracejo, “pensaria que você está apaixonado, Gabriel...”

Gabriel riu e coçou a cabeça, demonstrando algum nervosismo. “É, pois estou apaixonado...” respondeu. Ninna baixou os olhos e sorriu. Olhou novamente para ele, deu-lhe suas mãos, que segurou cuidadosamente, disse num murmúrio musical que sentia-se lisonjeada. Gabriel levou a mão aos seus cabelos, acariciou-os, pegou seu rosto entre suas mãos, os olhos dela pareciam penetrar os dele, pareciam ler todos os pensamentos e sentimentos que trazia em sua mente, e seu coração. Sorriram mutuamente, aproximou seu rosto, e seus lábios, dos dela, roçaram os narizes, as têmporas, e enfim ele a beijou – ou talvez ela o tivesse beijado, não saberia dizer – os olhos fechados, sentindo os lábios pequenos e doces dela sob os seus, as línguas se encontrando, se explorando.

Durante a semana, Gabriel sentia como se estivesse sempre nas nuvens, não apenas quando subia no avião, caminhava com uma firmeza, e ao mesmo tempo com uma leveza, como se caminhasse pelas nuvens, em vez das ruas da sua Manchester. Dava bons-dias a todos, sempre com um sorriso largo e franco, não importando se o tempo não estava assim tão bom, nem se as pessoas não gostassem dele tanto assim. E na verdade, essas eram bem poucas. A partir daquele domingo, do primeiro beijo, houveram outros, e os encontros tornaram-se mais freqüentes, não só aos domingos, nem só na igreja, nas missas do padre Johnson; Gabriel a levou para a casa do avô e apresentou-a à família como sua namorada, Ninna conheceu seus parentes. Noivaram no começo do verão de 1913, numa viagem a Londres, faziam planos de casarem-se dali há um ano, Gabriel iria pedir para o avô mexer seus pauzinhos, a fim de ser enviado para algum quartel das reais forças armadas, quem sabe na Austrália, ou em Hong Kong, e Ninna iria lecionar em alguma escola em alguma dessas colônias, talvez até dando aula para os filhos de militares britânicos por lá! Gabriel gostaria de discutir o assunto, mas Ninna nunca tocou nele, não falava sobre filhos, ele gostaria de ser pai, ter meninas, ouvia as tias dizerem que eram bem mais fáceis de serem criadas que meninos, mas ela nada dizia a respeito, ele não sabia como entrar naquele assunto. Só não queria forçar a barra. Imaginava que, mais cedo ou mais tarde, ela iria entrar naturalmente naquele assunto. Imaginava que toda mulher queria ser mãe, e com Ninna não seria diferente.

Porém, em meados de 1914, a Guerra explodiu no continente, a Alemanha atacou a Bélgica, e Gabriel foi convocado para lutar no front. Teriam que adiar o casamento por tempo indeterminado, não sabiam quando a guerra terminaria, nem se ele voltaria vivo.

Encontraram-se pela última vez numa casa de chá, no fim de tarde, numa cidade próxima a Manchester. O silêncio reinava pesadamente sobre eles, os sorrisos eram chochos e os olhares evitavam encontrar-se. Ninna começou: “Nós não temos nada com essa guerra, você não devia ser obrigado a ir, Gabriel. Tenho medo de não vê-lo novamente...” Ele deu-lhe um sorriso triste, procurando ser confortador, pegou as mãos dela e envolveu-as nas suas. “Ninna, se fôssemos para as colônias, provavelmente iríamos enfrentar situações como esta. Mas não se preocupe! Mesmo no front, estarei pensando em você, estarei com você... meu coração, minha alma... sobretudo minha alma! É sua. Eu amo você, Ninna, mais do que amo minha própria vida!”

Os olhos dela fitaram os dele, cheios de lágrimas. “Minha alma, minha vida também é sua, Gabriel! Não sei como viverei sem você.”

Ele balançou negativamente a cabeça: “Não, você não ficará sem mim... em espírito, estarei a seu lado, Ninna! Você confia em mim?” Ela sorriu, as lágrimas derramando-se e inchando seu belo rosto, acenou afirmativamente, murmurou que sim. Gabriel também sorriu, não segurando mais as lágrimas que queimavam-lhe os olhos. “Pois então confie que estarei ao seu lado, e que muito em breve, essa guerra estará acabada, e voltarei pra você, voltaremos a ficar juntos, seremos felizes!”

“Eu quero acreditar nisso...” disse ela, num tom um tanto queixoso. Gabriel afagou seu rosto, enxugando suas lágrimas. “Então acredite”, disse. “Quero estar com você todo o tempo. Você estará comigo, vai orar por mim?” Ninna sorriu, largou a mão dele e mexeu nos cabelos, daquele jeito que angelical e delicado que sempre o encantava. “Sim, estarei com você, meu amor, o tempo todo... orarei por você, todas as noites!”

À noitinha, deixou-a em casa, beijaram-se demoradamente, como se não quisessem, ou melhor, como se não pudessem se largar. Muito lentamente, ela foi entrando na casa, e ele foi andando, descendo a rua, também muito lentamente, voltando-se muitas vezes para olhá-la, sorrir-lhe, acenar. Prometera que iria lhe enviar cartas do front, uma por dia, se isso fosse permitido, ela também prometeu corresponder-se todos os dias, disse que contaria tudo o que fizesse “como se escrevesse um diário!” disse a ele rindo.

Na manhã seguinte Gabriel pegou o trem para o sul, enquanto a pesada locomotiva o levava para longe da dona de seu coração, da família, da cidade onde nascera e crescera, fitava a paisagem, como se esquadrinhasse além dos campos, além dos caminhos, vendo sempre o doce sorriso do seu anjinho. Baixou os olhos para a pequena pasta que trazia sobre os joelhos, abriu-a, dela tirou um caderno novinho em folha, comprado numa papelaria próxima à estação, puxou do bolso um lápis muito bem apontado, e se pôs a escrever, descrevendo a paisagem que via pela janela do vagão onde estava sentado, seus sentimentos, a saudade, que já estava se instalando sem pedir licença em seu peito... decidiu que aquela já seria a primeira carta que enviaria a Ninna. A primeira de muitas que ainda enviaria, naquele ano de 1914, e por toda a guerra, ainda.

Ayrton Mortimer
Enviado por Ayrton Mortimer em 29/10/2009
Código do texto: T1894429
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