O CARA DA CALÇADA

Aquele bairro distante em Nova Iguaçu ficava assim deserto pelo feriado de carnaval. As casas de tetos regulares, um pouco parecidas, sempre um pouco distantes das outras pareciam na sua maioria fechadas as suas portas.

Abriu o portão com cuidado, por que este rangia, assim já um pouco enferrujado. Eram cinco horas da tarde, o sol parecera desaparecer, pelo menos por ali, já que morros de azuis quase profundos pareciam fazer parede cercando o bairro, a rua. Mas o portão fora aberto com cuidado para que a mãe, doente, deitada lá no quarto, não despertasse, talvez gritando, chamando, pedindo para não ficar sozinha.

E lá estava ele, do outro lado da calçada, em frente ao seu portão, de braços cruzados sobre o peito, cobrindo a estampa da camisa preta com o nome da banda de rock. Andava sempre assim. Via-o sempre por ali, e até mesmo sabia seu nome: Pader. Tinha cabelos louros, compridos, um pouco desgrenhados, e nascia barba em seu rosto nesse momento, mas já o vira sem barba, num dia de chuva, ele nem segurava guarda-chuva, escorava-se pela sombra das marquises. Segurara seu guarda-chuva, mesmo, tardiamente, pensou em oferecê-lo.

Abaixou os olhos ali em seu lado, apenas contentando-se em vê-lo, e ele nem parecia olhar para sua direção, imóvel naquela posição, os cabelos resvalando sobre o rosto, naqueles olhos que confirmara ser verdes, por que topara bem de perto, antes desse dia da chuva, dentro do supermercado, e parecera ele arregalar um tanto os olhos como se a outra presença o assustasse assim de tão de repente.

Virou-se um pouco para dentro do seu quintal, e ouviu o silencio lá dentro da casa. Havia flores um pouco murchas pelo calor excessivo do dia, e era de se admirar que Pader usasse tão tranqüilo aquela blusa preta, uma bermuda verde musgo, e chinelos, embora.

Ele era sereno, calmo, parecia nunca querer falar. Talvez essa fosse à maneira de ver ele, outrem, que se topa apenas, tão ali próximo, mas tão distante para uma intimidade.

Via-o cercado de amigos, uns mais baixos, outro da mesma altura, ali naquela calçada, saindo daquele portão, todos com a mesma roupa, às vezes uns mesmos cabelos compridos, mas nunca igual a ele. Ele, Pader, parecia cercado de uma aureola diferente como esses santos de imagens de retratos nas paredes de casa de vovós. Sim da sua avó.

E se se aproximasse? Podia; mas que era aquilo descompassado, bateria ensandecida dentro do peito, fazendo as pernas tremer, o corpo, talo frágil de uma rosa, vergar sobre uma languidez pálida? Na boca secara a saliva.

Arriscou, sobre tempestades interiores, arriscou com bravura, o sangue fervendo, a atmosfera esmaecendo ao seu redor, tal como se o mundo acabasse de nascer outro com um terremoto sob seus pés.

Pader olhou, olhou como quem examina, franzindo o cenho, afastando os cabelos num gesto um tanto donaire, e sorriu, mas sorriu como com piedade.

_ Você não viajou como todo mundo – perguntou a Pader com uma voz engrolada, que foi preciso ele pedir que repetisse a pergunta.

_ Você. Não. Viajou. Como-todo-mundo? – disse demoradamente, sem ar, empalidecendo, como uma pessoa sem sangue mais nenhum.

Pader olhou ao seu redor, num meneio de cabeça, desvio de olhos, e então respondeu:

_ Foram sem mim os canalhas – mas não havia nem um tom real de rancor em sua voz, antes havia deboche, pilheria de si mesmo.

_ Então – arriscava com voz hesitante, tartamuda, sem saliva nenhuma na boca – aproveita-se e ouve muito rock.

_ Sempre é tempo de ouvir rock – disse de súbito, Pader, mais animado como se afinal reconhecesse com quem conversava.

Dentro de sua casa ouvia-se o som de uma televisão ligada, alguém tossia. Seu pai, e ali próximo ao muro pode ver uma saia, duas canelas finas de mulher, e sub-repticiamente uma mão com unhas pintadas de branco segurando um regador de plástico. Devia haver rosas não tão murchas quanto à da suas cerca.

_ Eu te vejo sempre aqui. Quer dizer Ás vezes – continuou, mas já não achando nexo na própria conversa, por que mexia para lá e para cá o pescoço.

_ Eu moro aqui há uns dois anos.

Sentiu certa violência no tom de voz macio dele, tal como se ele já começasse a se revoltar com aquela comunicação.

Diria talvez que morava ali desde que nasceu, sempre esteve ali naquela calçada, sozinho, vendo os dias passar depois das aulas e nas férias o dia todo como os finais de semana e feriados, todavia calou-se como se fosse necessário não esgotar.

_ Vou entrar – disse Pader num meneio de corpo todo, jogando os cabelos para um lado, e mesmo pareceu sorrir de volta, sem inimizade, contudo sem nenhum sinal de amizade.

Consentiu num ricto de face tácito, como uma mímica que implora interiormente, e as suas mãos fez um leve gesto de que tentava agarrar um balão que se esvaziava e fugia sobre pressão para longe do seu poder.

Continuou ainda ali naquele lado da calçada, olhando o portão fechado, portão de madeira, e de lá de dentro vinham ruídos que não se conseguia distinguir, mas era como se Pader não estivesse lá dentro, mas escondido em outro lugar e que só reaparecesse ali na calçada, mas não agora, talvez amanhã, ou mais tardar depois de amanhã. Ser-se-ia possível outra comunicação?

Entrou a sua casa. Entregue a escuridão, vozes vinham do quarto fechado da doente, ela clamava por companhia:

_ Não me deixem sozinha, não me deixem sozinha.

Acendeu as luzes da sala e da varanda, acudiu depressa ao quarto da doente, encontrou-a na penumbra a se debater na cama, com as garras da unhas cravadas nos lençóis, até que se aproximassem, a afagassem, e dissesse tranquilamente:

_ Estou aqui, logo, logo papai chega, trás remédios, acalme-se mamãe.

Sim, ela se acalmou, mas mal abria os olhos, os cabelos desgrenhados soltos sobre a fronha amarrotada, o rosto devastado.Ela acreditava na doçura daquela voz, sim acreditava e quase podia dormir de novo.

Devagar se aproximou da janela cerrada, observou a doente mais calma, sentiu o moribundo cheiro de remédio, então descerrou a janela com certa sofreguidão, respirando o ar, sabendo que dali se podia ver alem do muro, podia ver o outro lado da calçada, a casa de Pader, e lá estava ele de volta ao portão. Ficou admirando, perguntando, com o coração perturbado, se de lá era possível ver ali. Pader abriu um sorriso, mas o sorriso era para direção do começo, ao longo da rua; o sorriso era tão franco que ele, de pele tão clara tornava-se escarlate, e pôde começar a ver um pedaço de bota de alguém que se tomaria completo em presença aos seus olhos já - já. Mas aproveitou, eclipsou-se, escondendo-se, abaixando-se embaixo da janela, e do “vou entrar” ressoava mais em seu coração do que na consciência que escutou o murmúrio da doente admirada do frescor que vinha da janela aberta.

Rodney Aragão