O ENCONTRO

Gabi abriu o baú que há muito tempo estava esquecido no fundo de um armário.

Cartas antigas, de pessoas que ela nem lembrava mais quem eram, flores secas, lembrancinhas de casamentos que já estavam desfeitos e de nascimentos de, já então, marmanjões e velhuscas, espalharam-se sobre a cama misturados a uma infinidade de fotografias.

Gabi tomou uma delas. Era a foto de uma formatura. No centro o seu próprio retrato exibindo toda a exuberância de seus dezoito anos e, à volta, em tamanho menor, cada uma de suas quarenta e poucas colegas de turma.

Recebera há pouco o convite que lhe despertou antigas recordações e a levou a querer ver mais uma vez sua foto de formatura.

As colegas estavam querendo reunir-se para comemorarem juntas os cinqüenta anos de formatura.

Cinqüenta anos! Meio século! Parecia mentira que tanto tempo tinha se passado e que aqueles jovens rostinhos estariam hoje envelhecidos, tentando disfarçar para si mesmos o passar do tempo, escondendo os cabelos brancos sob a tinta loura ou escura, sorrindo meio esquisitas com a cara de boneca com que o famoso cirurgião plástico tentou disfarçar-lhes as rugas.

Lembrava muito bem de todas elas. Foram colegas por muitos anos em um colégio interno.

Naquele tempo, as pessoas de classe média alta não permitiam que os filhos, muito menos as filhas, freqüentassem escolas públicas.

Moças e rapazes de boas famílias estudavam nos colégios religiosos, como a Gabi.

Seria muito prazeroso encontrar as antigas colegas que tinham sido tão amigas, mas cujas amizades com o tempo e a distância foram se perdendo até cair no esquecimento.

Quantas delas conseguiriam reunir-se?

A colega que lhe escreveu pedia a ela, se soubesse do paradeiro de algumas delas, que transmitisse o convite para que pudessem reunir o maior numero possível de participantes.

Claro que ela iria ao encontro e faria o que estivesse ao seu alcance para que o mesmo fosse um sucesso

Antigas imagens vieram-lhe a memória.

Lembrou-se de quando, ainda criança, matriculou-se como interna no Colégio Maria das Graças.

A disciplina no colégio era muito rígida, mas ela não estranhou, pois a sua família também era conservadora e muito exigente.

Conviver com tantas garotas de sua idade foi muito bom e ela foi muito feliz naqueles longos anos de estudo.

No colégio o seu nome era Gabriela e ninguém podia chamá-la de Gabi se houvesse alguma madre por perto, isto é, nunca!

Ela odiava o seu nome. Não estava na moda. Era nome de velha. Gostava muito mais do apelido Gabi.

Mas isto não tinha muita importância.

A convivência com as colegas era muito alegre e apesar da constante vigilância ainda conseguiam fazer muitas estripulias.

Os únicos rapazes que elas viam eram Daniel, o coroinha e Carlos um seminarista que ajudavam o padre nas missas diárias.

Metade das meninas eram apaixonadas pelo Daniel e a outra metade pelo Carlos.

O Daniel era brejeiro, cada vez que cruzava com alguma delas, sorria, dava uma palavrinha e ela ia toda orgulhosa contar para as outras.

Gabriela preferia o Carlos. Era mais bonito, mais adulto, só que era muito sério. Parecia não perceber os olhares de dezenas de meninas ás suas costas enquanto estava no altar e quando passava por elas limitava-se a um cumprimento ligeiro.

Ela procurava, mas não conseguia deixar de pensar nele.

Achava que, sendo ele um seminarista, isto era pecado, que teria que contar ao padre quando se confessasse.

Sabia que o padre não pode divulgar o que ouve no confessionário, mas tratando-se de uma falta tão grave, era bem capaz de achar que devia contar à madre e esta certamente chamaria seus pais...

Sorriu ao lembrar-se da sua preocupação. Como sofreu por isso!

Por onde andaria o Carlos? Será que agora ele seria um padre?

E chegou o dia da esperada festa. Estavam formadas. Quarenta e tantas professoras primárias, única carreira permitida para as mulheres naquele tempo.

A cerimônia foi linda. A missa de ação de graças, o sermão caprichado do Padre, o discurso da Madre Superiora, a sessão solene de entrega dos diplomas, as fotografias, o banquete para as formandas e seus familiares.

Gabriela chorou durante toda a celebração. Todos pensaram que ela estava emocionada, mas ela estava, mesmo, era triste por pensar que talvez nunca mais visse o Carlos.

Tinha que fazer alguma coisa para que ele soubesse do seu amor por ele. Quem sabe se sabendo isso ele desistiria de ser padre? Agora ela estava indo embora e as madres, mesmo que descobrissem não podiam fazer mais nada.

Pegou, então, seu livro de orações e escreveu na primeira folha:

“Eu te amo. Se quiser falar comigo estarei sempre na missa das 6"

Embrulhou o livrinho e pediu para o Daniel entregar a ele.

E chegou a hora da despedida. Companheiras de estudo e de brincadeiras, agora seguiam cada qual o seu caminho que provavelmente nunca mais se cruzariam.

Ficava para trás o Colégio Maria das Graças, com as Irmãs Religiosas que foram como que segundas mães para elas, com seus encantos e desencantos.

E Gabi conscientizou-se de repente de que a sua infância e adolescência terminavam ali e que agora era gente grande com todos os direitos e responsabilidades.

Gabriela estava formada, mas o pai não permitiu que ela lecionasse.

Havia poucas escolas para muitas professoras que se formavam todo ano e era muito difícil a colocação.

Tinham que começar em escolas isoladas, distantes, e contava-se muita coisa que acontecia com essas moças que iam morar sozinhas ou com famílias desconhecidas, longe dos seus, numa época em que isso não era bem visto.

Uma foi trabalhar em uma colônia húngara. Ninguém falava português na tal colônia e ela não conseguia entender a língua deles, muito menos ensinar alguma coisa para as crianças. Como era de se esperar os alunos não aprenderam nada e ela foi prejudicada em sua carreira por causa do mau aproveitamento conseguido.

Outra foi para uma escola distante e o único meio de transporte para a cidade era uma canoa que devia atravessar um rio. Ela quase morria de medo e tinha pesadelos quando se aproximava a data de ir à cidade para as reuniões de trabalho.

E contavam-se coisas piores, ainda, que ninguém sabia se era verdade ou não.

Diziam que uma professora morreu e a família que a hospedava fez o enterro e não comunicou nada à família dela.

Os pais só souberam tempos depois e quando falaram com a dona da pensão ela disse simplesmente:

-Nois num tinha o endereço. Num dava pra avisar.

Verdade ou não, o pai da Gabi não ia deixar que ela corresse esses riscos. Afinal ele era bem de vida. e ela não precisava mesmo trabalhar.

O encontro foi em uma chácara e conseguiram reunir muitas das antigas colegas.

Algumas foram com o marido, levaram filhos e netos, de sorte que o grupo ficou muito grande e divertido.

E a surpresa!

Uma das colegas perguntou:

- Você se lembra do Carlos?

Gabi sorriu. Há quanto tempo não se lembrava do Carlos!

- Pois ele virá passar o domingo conosco. Meu marido que é muito amigo dele convidou-o. Ele disse que vai celebrar uma missa para nós.

Gabi sentiu um choque. Como seria encontrá-lo agora? Será que ele se lembrava da sua declaração de amor escrita no livrinho de orações?

Que bobagem! Ele mal a conhecia. Devia ter rido dela e esquecido.

Mas não pode evitar a ansiedade até que ele chegasse e se defrontassem.

Ele estava muito diferente. Velho, gordo, careca, mas muito alegre e comunicativo. Nem de longe parecia o rapaz elegante, bonito e sisudo que balançara seu coração pela primeira vez!

Elza apresentou-os:

- Esta é a Gabriela. Lembra-se dela?

- Como não havia de lembrar? Recebi um presente dela no dia de sua formatura, lembra-se?

Gabi sentiu-se corar, ficou muito sem graça, sem saber o que dizer.

Mas ele deu uma risada:

- Sabe que você me perturbou com aquele livrinho? Cada vez que olhava para ele sentia-me em pecado.

Gabi acabou descontraindo-se e contando para ele o medo que tinha de estar pecando quando pensava nele.

Como eram ingênuos, crianças e inocentes!

Agora estavam velhos, vividos e calejados. Podiam falar de seus sentimentos sem receio de pecar, conscientes de que haviam escolhido seus caminhos, feito suas opções que honravam e respeitavam.

E o encontro acabou sendo muito mais emocionante do que Gabi esperava.

Maith
Enviado por Maith em 19/02/2010
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