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A luminosidade débil dos postes de luz da cidade enchia as calçadas de certa lugubridade, e passos apressados de uma jovem de vestido de cetim vermelho enchiam a noite silenciosa de um barulho seco. Ela rumava direita à igreja. A catedral ainda estava aberta àquela hora alta da noite. Ela benzera-se, inclinando-se em reverencia ao altar mor da nave quase vazia da igreja. Bem lá a frente dos bancos, velhas beatas em suas mantilhas, ajoelhadas rezavam ladainhas em sussurros bem audíveis.

Ajoelhou-se ao genuflexório dos bancos da igreja, abaixou a cabeça e começou a orar, na verdade engrolava uma oração que não sabia bem o que se podia orar, sentindo os joelhos doerem (isto era mais importante). Ela rezava pelo fim da guerra que mal havia começado. Mal sabia ela que seriam ainda longos anos. Todas aquelas noticias que ela ouvia no radio, que no cinema – nos intervalos entre um filme e outro – assistia-se: um bombardeio em Londres, Invasão de Paris, etc., assim vinham as noticias na sua cabecinha, outrora tão fresca, sempre admirando um novo chapéu numa boutique a Rua do Ouvidor.

A humanidade, ela jamais podia entender, por que de tanto sofrimento, por que de tanta barbaridade, se seria bem mais simples viverem todos, amando? Amando? – de repente seus olhos se ergueram, olhos de umas lagrimas espremidas, e um sorriso seco nasceu dos lábios finos. Ela amava, e àquela hora seu amado deveria estar em Vila Isabel, pelos bares cantando, com seu fato branco, após uma sinuca e outra, chamando Odete (seu nome), cantando junto com as canções do radio, estas canções que agora tocam, em ritmo de viola, de um batuque rebolado, tão destoante do que fora antes musica, quando ela bem menina, aquele piano que ainda conserva no canto da sala, de vez em quando vai lá e toca: sonatas. Debussy, Chopin... Ela guarda de cor algumas, mas o batuque rebolado vai invadindo as vozes das cantoras de radio, roucas, o samba canção, o fado brasileiro, e olha-se, percebe-se o ambiente que a cerca no momento: a igreja, a catedral, os santos, o Cristo crucificado. Heresia ficar pensando em radio, cantoras de fado, samba, nem mesmo pode pensar em Debussy.

O pai sonhando com uma pianista, tão bela Odete, filha de funcionário publico, de uma mãe zelosa, que gosta que a filha leia os bons romances, aprenda francês, inglês, leia os romances no original. MADAME BOVARY é pesado demais para mocinhas como ela, Odete, que foi para o samba uma noite dessas em Vila Isabel, doida, alucinada por dançar com Carlitos, o malandro freqüentador dessas noites, que a chama na “solidão” da sinuca com os amigos de copo, que enverga aquela fato todo branco. Existem outras pequenas, mas nenhuma igual à Odete, assim moça de família, arriscando de vez em quando a reputação para passar um noite naquela Vila Isabel, quem sabe Lapa.

A Lapa é pesada demais para você minha miúda – diz Carlitos, encontrando-a no bonde. E ela abaixa os olhos, e lembra do romance proibido: MADAME BOVARY.

Volta a abaixar os olhos, juntou as mãos e recomeçou a engrolar a oração na nave penumbrosa da catedral. Depois daquela tentativa de assim na terra como no céu, lembrou-se de um samba de Aracy de Almeida, mas na voz de Carlitos, a voz rouca de Carlitos, a voz masculina da sambista, a magreza de Carlitos, a palidez do seu rosto, como é apaixonado por versos. Leu de Baudelaire para ela, mas ela já pode arriscar ler no original francês, embora Carlitos ache que ele esteja abafando ao ler para ela traduzidos.

Aquela noite, o pai acreditando que ela estava à casa de Sonia. Soninha, Soninha, ligou de um orelhão, diz que sim, diz que sim, faz de conta que estou em sua casa, seus pais mesmo podem acreditar é só não saíres do quarto. Devo-lhe esta minha cara, caríssima, sabes bem, a guerra, dizem que o mundo pode acabar em certo sentido se os nazistas vencerem.

Por isso chorou aquela noite, embora a música convidasse a alegria, num bar a praça, gente batucando sobre a mesa, mulheres requebrando, mulatas. Nem parecia um mundo em guerra.

Guerra, guerra é em fita de cinema – quem que disse? Tentou procurar, e era um rosto de mulher que desapareceu entre uns ombros numa pequena multidão sobre as luzes débeis da noite, ganhando a escuridão.

De mãos dadas com Carlitos, admirada do seu lindo cabelo a gomalina, assim perfumado, com um cigarro a outra mão, assim caminhavam pela calçada movimentada daquela noite de sexta para sábado, e também olhava para as pedrinhas da calçada, encantada, e de repente parando ambos, assim frente a frente, ele colocando o cigarro entre os lábios, em que por cima habitava um bigodinho, sob a luz de um poste que pareceu os iluminar tão bem, tal como se fosse uma noite de lua cheia. Ele a viu linda deslumbrante naquele vestido de cetim cinza, rodado; ela queria saber de uma coisa, ele iria à guerra? Que guerra? Riu ele como se ela estivesse falado de uma fita de cinema e transposto esta para realidade. Então, a guerra na Europa, combater os nazistas – e abaixou a cabeça, e sabia que era só o que falava o radio, mesmo quando ia ao cinema, aos intervalos, lá estava as noticias da guerra: Churchill, Hitler? Então? E ele ria, buscava aqueles ingênuos lábios para um beijo, trazia-a pela cintura, juntava o seu corpo com o dele, e lá no fundo, vindo do começo ou do fim da rua, o samba que embalava aquele momento romântico; o pezinho dela levantado (coisa que ela vira em fitas de cinema).

Levantou novamente os olhos, olhos pisados de umas lagrimas duras de sair, e o samba de novo ecoando dentro da sua consciência como se tocasse mesmo dentro da catedral quase vazia.

A guerra que marchava para um holocausto, assim ouviu dizer um comentarista na radio. A palavra pesada como os romances proibidos, como a Lapa, a Lapa dos malandros que só Carlitos conhece. A Lapa que ela só viu de relance por que aceitou o convite de ir para o quartinho de rapaz de Carlitos. A Lapa escura e obscura. Secreta, temerosa, isolada como a guerra, esta ultima que Carlitos não irá, não irá.

Apertou bem forte as mãos uma na outra, o rosto contrito derramou lagrimas em abundancia, e ela perguntava a Deus, onde Carlitos se metera se não seria possível ele ter ido para a guerra, para o holocausto, sentindo os joelhos ainda mais martiriza-la, porque estava sozinha, sozinha... E pecara contra a castidade e nem mesmo sabia o que de errado tinha em ler MADAME BOVARY, e estava grávida como ouviu o medico que Soninha e sua mãe levaram-na escondida do pai, mas o pai tinha que saber, ela não teria como esconder. Carlitos foi para guerra, dizia, mesmo já disse a mãe, a senhora não ver as noticias ai no radio, a guerra ruma para um holocausto, e a palavra “holocausto” soava pesada, ela alisando o ventre que ia crescendo, chorando a mesa da cozinha, recebendo de Soninha o copo de água do filtro de barro, com ã mão direita tremula e a outra sem deixar de alisar o ventre, do bebê que ia nascer sem pai, mas de um pai que fora lutar bravamente contra os nazistas, que fora enfrentar o terrível holocausto.

Ergueu-se, joelhos sangrando, pés vacilantes, mãos tremulas, muitas lagrimas no rosto devastado afinal pela tristeza que buscou do âmago. Deixou a nave, com cuidado para não virar de costas para o altar mor, fez à profunda reverencia, e já na rua, na escadaria, diante da noite estrelada, esperou, mesmo acreditou cegamente que um bombardeio estava prestes a acontecer agora, ali mesmo onde ela se encontrava imóvel e desesperançada.

Rodney Aragão