O chamado de Derdália

Me conservo abstrato, repousado e calado ao lado do seu corpo ainda quente. Há um pequeno canal de suor abrindo espaço e percorrendo o contorno do seu pescoço chegando até o ombro, onde sucumbe por entre os poros de sua pele macia, infiltrando-se novamente dentro do lugar de onde veio. Há aquela pequena marca marrom de nascença que eu somente relembro quando a avisto, fica ali, cuidadosamente encaixada entre os três primeiros centímetros abaixo do seu queixo.

Minha respiração ainda permanece ofegante. Você conserva aquele olhar baixo, como se pudesse avistar, além das cobertas de algodão, o mais pacífico dos mundos. E posso entender que esse olhar significa qualquer coisa como compaixão, sim, sei que você também queria que eu o pudesse encontrar, ou compreender. Mas é ali que você vive, não eu. Tenho tremendo receio de viajar por entre essas fendas do pensamento em que ninguém antes ousou habitar. Não saberia como viver do outro lado do pensamento, e jamais saberia como retornar de lá. Não, isso me mataria tão rápido quanto um peixe que retirado da água morre em um banho de sol: e ainda que no céu a mais bela e ofuscante estrela brilhe, isso não diminui a dor de suas brânqueas se fechando lentamente. Pobre peixe, retirado de seu mundo e prometido ao paraíso, almaldiçoado pela superfície, conduzindo-se vagarasomente ao destino fatal que encontra a morte. Esse, ainda que banhado pelo mais lindo raio de sol, cederia ao ao fim. E o mundo, que às vezes é maravilhoso, não interfere no fato de que ele irá rapidamente definhar em direção ao nada, e repito: nem luz nem brilho nem nada pode tornar sua morte menos dolorosa ou mais rápida. Nã há compaixão nas palavras, as feridas são mais ao fundo dessa vez.

Calculo a melhor maneira de mantê-la intacta. Era preciso imenso respeito: não poderia ignorar a forma com que havia adentrado minha vida. Você, esse tipo de alguém assim, vindo do nada, como aqueles que nascem um dia, em filas bancárias ou em noites de balcões de bares, nesses dias em que se acredita piamente que não há nada para se ver além do que já foi visto. Porém, de repente, ao surgir desse alguém que não se sabe como explicar mas é essencial desde a primeira troca de olhar, você se observa pensando em coisas que jamais havia pensado antes, e redescobre qualquer coisa que você acreditava jamais ter possúido. E tem de se convencer que isso esteve sempre ali. E então entende que sozinhos não somos nadas, é preciso sempre essas outras mãos para nos descobrirmos dentro da gente mesmo.

Estamos, os dois, envoltos em distintas atmosferas de lua e de sol, tentando não permitir que dúvida alguma ultrapasse a barreira das quatro paredes que agora nos protegem nesse quarto escuro. Tudo que vejo são desejos flutuando a nossa volta, entrando e saindo de nossas mentes, feito vultos não tão velozes, vindos para ficar.

- Você não pensa ser irônica e desprezível a maneira com a qual, nós, humanos, atribuímos tão grande valor às mais banais das coisas todas? Eu digo sobre essas todas, da existência e tal...

- Isso é fato, sim. - E isso é tudo que consigo lhe dizer.

- Por exemplo, quando alguém nos fala - aí você subitamente começa a enrolar maços de cabelos em seus dedos, olhando para o teto que nos cobre -, abrir a boca é a primeira reação que obtemos, como uma tentativa de encontrar em uma junção de letras uma palavra milagrosa que glorifique e justifique a desgraça alheia. E o engraçado: bastaria apenas ter ouvido, e só.

- Entendo. Como daquela vez em que estávamos procurando aquela cachoeira durante as férias de verão, nos deparamos com umas das visões mais lindas das nossas vidas no meio da caminhada. E esse tentar é como se deparar com uma dessas magníficas paisagens aonde menos esperávamos: em vão tentamos descrevê-las em palavras, como se essas declarações pudessem superar a perfeição do silêncio da natureza por si só.

- Sim, tão inútil quanto essa veneração da matéria humana, ou do sexo. São essas as primeiras coisas a se degenerarem, a converterem-se ao pó.

- Então somos banais, por fazer sexo, por exemplo?

- Acredito que sim. Ser banal e reconhecer isso, pode ser uma virtude. Porque a arte perde sua intenção na justificativa...

- Se sacia sexo com sexo, meu pai me disse uma vez. Mas saciar amor com amor, ah, isso sim é impossível.

- Porque sexo é carne, sim... Amor é como tocar o vento, o coletar para si. Ou então caminhar de encontro à escuridão, sem olhar para trás uma vez sequer.

- Talvez sexo seja melhor e mais significativo do que o amor, então. - Não, eu realmente não acredito nas minhas próprias palavras, mas é interessante manter o diálogo nesse rumo, e não saberia dizer porquê.

- Talvez.

- Você deveria acreditar em amor, não deveria?

Você então se recolhe para o seu dito lado da cama. Eu tento não encontrar palavra alguma que se encaixe na situação, pela primeira vez, como se esse fosse o segredo que nunca consegui desvendar. Alguma coisa está acontecendo ali e eu não quero abortar nenhum acontecimento em seu natural percursso. Envolvo seu corpo com um dos meus braços, a sinto pequena e frágil.

- Eu acredito, estou aqui, não estou? - Sim, é isso que você me diz.

- Eu te amo. Posso ficar até amanhã? Podemos tentar essa última vez... E então a chamaremos de última vez. Prometo...

- E então nos perderíamos novamente. Tudo o que fazemos é viver para morrer, já percebeu? Tudo que fazemos é matar um ao outro, o tempo todo, a cada beijo, a cada abraço, a cada encontro.

- Não... - Busco palavras e elas escapam por entre meus dedos, feito a tentativa frustrada de coletar água dentro das próprias mãos.

- Você, só você tem meus jeitos tão bem guardados nos contornos dos seus braços. O que é que te faz esquecer disso quanto convivemos sobre o mesmo teto? Eu havia sonhado tanta coisa para a gente...

- Eu havia sonhado. Isso deveria bastar?

- Isso tem de bastar agora. - Suas palavras ecoam feito gritos da maior aflição já alcançada em um corpo humano sem o uso de armas ou força, me sequestram inteiro e eu decido que é hora de crescer sem você, deixar-nos ir. Algo como renegar ao amor para ser capaz de viver, algo como libertar-se de si, como fazer o sonho de criança morrer para o adulto nascer.

- Vamos dormir. Vou partir amanhã, estarei no primeiro trem de volta para casa, eu garanto.

- Boa noite.

- Boa noite.

Chana de Moura
Enviado por Chana de Moura em 07/04/2010
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