DESSAS MULHERES

Trancou-se no quarto escuro porque anoitecera doidamente. Ficara intima consigo mesma, apenas de calcinha e soutien no carpete duro.Sentia a franja do colcha da cama a lhe bater no rosto.

Na lassidão e melancolia lembrou-se lá no fundo de uma música, uma música da Maria Bethânia. Pensou na vitrola, no disco, mas a mão, a mão não chegava, tentaria ir se arrastando até apalpar no escuro.Ela precisava ouvir aquela canção da Maria Bethânia.É aquela canção considerada tão cafona, que fala de cada um que tente entrar no seu coração.

Está é apenas Patrícia. A nossa Patrícia que na noite anterior bebera, bebera que viera a manhã e ainda havia a vontade de beber.

Chegou às dezoito horas de ontem: Linda, loura-farmácia, de preto transparente e maquiagem sutil. Pedira à mesa apenas uma água mineral enquanto esperava,e era feliz porque acreditava ser alguém que não esperava em vão.Esquecera-se que era a mulher que devia atrasar, mas o perdoou afinal ela que se adiantara de mais.

E à hora fora passando com o bar ficando cheio e ela tão só na mesa. Pedira ao garçom um copo de chope não acreditando que fosse possível o furo.

E vieram tão seguidos os outros copos de chope, e Patrícia ouvia tão alto o zum-zum-zum alegre dos outros ao bar, dos que saíam e dos que entravam. Ela ainda na esperança inútil.Recusava-se a acreditar já vendo o óbvio, e mais um copo de chope.Quem sabe então uma vodca com soda? Veio logo uma musica em voz castelhana: triste, compungida; fora aumentando a sede pela embriaguez e a amargura.

A cara se amarrotou como se com o sono resistisse. E não seria também isto? Esfregou o rosto, pediu ao garçom mais uma vodca com. laranja, sugerira maliciosos o garçom.

A madrugada avançava e tu do era apenas um fragmento de uma hora que não queria passar.

Um galo cantou na cabeça e ela estava trêbeda, ouvindo, derreada à mesa, e só no bar que já virara botequim uma canção sertaneja medonhamente trágica. E os garçons faziam a vez da faxina no salão do bar que virara botequim, com as calças arregaçadas a jogar baldes de água com sabão aos seus pés.E ela quase que estremunhava a ameaçar uma reação com a ponta do dedo.confundia sua voz mortiça com a lamuria da canção sertaneja no fundo do bar-botequim.

Aonde você esta Patrícia? Era o galo cantando ou perguntando. E não sabe com que situação chegara em seu apartamento no décimo andar da Avenida Nossa Senhora de Copacabana.Naquele labirinto infindável de portas tudo iguais pode reconhecer – assim descorçoada – à sua porta : o seu número.

Se caso ocorresse reação poderia clamar no escuro que nem se reconhecia existindo: estou no meu moquifo mesmo? Mas era só um molambo naquele dia seguinte que não acabava, e não há molambo que reaja. Molambo aceita aonde é jogado, e onde é jogado fica.

Estava. Havia a possibilidade, em aberto agora, de ali ter sido levada.Estar-se-ia num canto estranho ao seu cotidiano.Fora o pico e quase insurgiu dentro de si aonde estava quase morta.

Queria no intimo a velha canção considerada cafona da Maria Bethânia. E de dentro da sua maçã repartida ouviu o fundo do bar: o lamento da canção sertaneja.

A espuma do chope que virou no choque do abandono do seu braço perdendo o autocontrole, ou a espuma de sabão que lavava, lavava, e ao invés de, virou foi botequim? Ah, ela estava onde? Ouvira um galo cantando, cantando... Era na sua cabeça.Mas cadê as buzinas dos carros na Avenida Nossa Senhora de Copacabana? Devia de a janela estar fechada. Sentira um sopro morno de um vento que só podia vir da janela.Buscara o olhar, doida pela escuridão, e só enxergou mais escuridão e mais dentro do brejo.Brejo? Cheiro de anfíbios, o que podia ser mais?

Patrícia, Patrícia... Ouviu seu nome além do canto onde estava, e no entanto acreditava piamente ter saído de dentro de sua mente como o próprio canto do galo.

Escutara passos em folhas secas vindo da onde vinha o vento morno. Devia estar sonhando, afinal modorrava por aquele tapete áspero.

Novamente o cheiro de anfíbios, lembrando-a remotamente da casa da avó em Vassouras. E doidamente, como tal acontecera aquela noite em sua vida, começaram a coaxar.Patrícia rira fraca, fraca: louca, louca.Como se ouve coaxar de anfíbios em plena Zona sul?

Maria Bethânia cantava tão viva para os bêbados aquela musica. Ela ouvira consciente na claridade do seu flat, sempre deitada no chão e sonhando com uma embriaguez como esta, como esta.

Deus – ela sofre já imaginando – se acendem a luz eu posso não suportar!

Afinal nem acreditava mais que fora naquele bar que virara botequim para um encontro.

E para que fora?

Estava loura-pastel e de preto transparente na pele clara. Queria ser o imã, queria atrair, queria encher o “pote” de todas as cachaças do “mundo”.

As mãos obtiveram no escuro, pleno e sumarento, o contato irreconhecível com o carpete. E que franja era aquela que lhe alisava a face: uma colcha? Que colcha?

“Se acaso me quiseres sou destas mulheres...” Ela ouvia lá depois do escuro impenetrável onde estava derramada. Estava derramada no escuro, e sentia um cheiro doce de sabonete; cheiro enjoado que a enjoa na modorra em que nem arqueja na ânsia...

Ah, um rosto jovem e pacato a olhando como que debaixo da mesa, com um rodo ao mesmo tempo em que a sorriu parecera ter a puxado junto com a água de sabão. E ela veio e estar ai onde sua mão quase ressuscita e quer avisar alguma coisa.Que já sabe talvez sem saber aonde estar.

Não é a sua casa, o seu apertado espaço luxuoso. E se a luz acender ela vai...

No escuro que adensa ainda mais a ânsia vai fazendo ter forças para arquejar. E é o cheiro doce do sabonete que se aproxima cada vez mais, cada vez mais.E como ganhara aquela familiaridade assim ao chegar? Não podia entender tanto atrevimento. O atrevimento era seu.

O sapo ou a rã coaxou isoladamente naquele – era difícil acreditar – brejo e ela se lembrou ainda mais perto da sensação da música da Maria Bethânia: ”Ele veio com uma garrafa de aguardente..."Era, era como o sapo ou a rã coaxando o soluço que dera no escuro já então violado, e ela só de calcinha e soutien se sentindo nua, cobrira-se inutilmente com os braços fracos e com o olhar fraco e dolorido pela luz, que penetrara do outro cômodo enxergara enfim o homem simples, sem camisa, enrolado da cintura para baixo numa toalha.

O homem a sorriu, e Patrícia se entregara ao que sentia no exato momento parvo do confronto: uma puta ou só “dessas mulheres...”.

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AUTOR RODNEY ARAGÃO.