Memórias

Observei. Samantha conversava com as amigas enquanto eu, sozinho, estava sentado encolhido num cantinho mais distante do pátio, esperando meu pai vir buscar-me. Às vezes, acontecia de meu pai demorar a levar-me para casa e eu ficava lá, só, esperando, esperando, esperando...

Por conta disso, era muito perseguido pelas inspetoras do meu primário. Mais particularmente pela Dona Úrsula – a quem chamava carinhosamente Dona Urso –, uma mulher forte, pesadona, usando sempre coques em seus cabelos negros e medonhos e moletons em vários tons de azul no inverno e roupas no estilo de academia no verão e que se fosse comparada a mim seria um urso, enquanto eu, um simples e medroso esquilo. Assim, recebendo indiretas das inspetoras e umas diretas da D. Urso, os outros alunos – especialmente meninos perturbados da minha sala – irritavam-me com brincadeirinhas idiotas.

Com tudo isso, acabava me retraindo e ficando num cantinho qualquer, onde ninguém poderia me ver, só mesmo a D. Urso. Mas Samantha, a bela Samantha, geralmente tinha o mesmo problema (e acabava me vendo também), o que nos aproximou, pois ela tomava minhas dores. Embora isso não tenha melhorado em nada as caçoadas dos meus adorados colegas de sala – pelo contrário, piorado –, eu gostava muito de tê-la ao meu lado. E ela parecia sentir o mesmo.

E foi o que aconteceu: Samantha viera ao meu encontro em tal manhã e, sem maldades que éramos, demos as mãos com a intenção de demonstrar algum sentimento a mais pelo outro do que provavelmente aconteceria com um estranho.

Respirei. O tempo passou e alguns anos mais tarde reencontrei Samantha. Estávamos os dois também na mesma sala de aula e na mesma escola. Tínhamos 17 anos e terminávamos o terceiro colegial. Ela sorriu para mim e pareceu reconhecer-me quando me viu a primeira vez. Trocamos olhares o restante do ano e começamos a namorar por volta de outubro. Foi meu primeiro beijo e minha primeira vez e meu primeiro amor.

No ano seguinte planejávamos o casamento para dali a uns dois ou três anos. Por que esperar se poderíamos conquistar tudo juntos? Com a bênção de nossos pais, casamos. Já havíamos vivido 23 anos. Samantha estava mais bela que nunca. Seus cabelos louros ondulantes passavam agora para um castanho-claro deslumbrante, algo além do dourado. Seus olhos continuavam vítreos – porém, cálidos e amantes –, com aquele verde inesquecível. Seus lábios haviam ficado mais tenros e mais rubros, tornando o beijo melhor que de um anjo. Sua pele era macia, mais macia que antes, alva, reluzente, como as pétalas de uma rosa branca orvalhada. Seu andar era ereto, equilibrado, elegante, suave como o voo das borboletas.

Eu? Eu continuava como sempre: bonito aos olhos dela. Mesmo com o tempo, ela me dizia, eu continuaria eternamente lindo. Bem, eu não deixava por menos: vivia dizendo o mesmo, com os olhos brilhando de amor, como ela o fazia, recompensando-a, sempre que pudesse, com beijos calorosos, buquês imensos de flores, seus perfumes favoritos e, muitas vezes, com o doce que ela e meio mundo mais gostavam: chocolates! E fazia isso só pelo prazer que era ver seu rosto deslumbrar-se num estonteante sorriso.

Adoeci. Quando a vida passava e sempre parecia que nunca havia sido o suficiente, minha amada adoeceu. E eu junto com ela. Já havíamos vivido 35 anos. Tempo ainda insuficiente para nosso eterno, deslumbrante e inesquecível amor.

Samantha estava com câncer. A doença maldita, que não tinha piedade e tampouco cura. Vi-a clamar, chorar, urrar de dor. E eu junto a ela. Minha alma repetia com ela todo sofrimento e ninguém tinha mais esperança. Nem mesmo eu. Minha fé havia virado fumaça. Quando se vê alguém sofrer daquele modo, é impossível crer. E eu não cri.

Menos de um mês depois, foi a vez de Samantha virar fumaça. Ela me deixou. Eu sofri. Minha alma sofreu. Sofreu mais que com a perda de meu pai, minha mãe! Não houve um dia em que não amanheci dilacerado.

Envelheci. Nos poucos meses depois que Samantha havia partido, eu me tornei um velho. Fiquei ranzinza, não suportava ninguém, não queria nenhum vivente por perto. Reclamava de tudo, de todos, reclamava a tudo, a todos e me tornei um peso morto, um saco para tudo, para todos.

Meu corpo já não respondia como antes e eu já não era mais tão ágil quanto antes. Dores que vinham com a idade, doenças esquisitas e desejos de morte surgiram muito antes de seu tempo verdadeiro. Eu estava me tornando um velho e meu sofrimento psíquico se tornou meu sofrimento físico. E eu não quis mais sofrer.

Lembrei. O rosto de Samantha refletiu em mais uma janela, como se ela estivesse atrás de mim, enquanto outra lufada de vento atingiu minha face... O fim se aproximava e tudo o que conseguia pensar era em seu corpo quente, seu rosto marcante e seus olhos verdes e vítreos inesquecíveis...

Abri mais os braços a fim de sentir a liberdade do momento, o vento batendo contra mim, enquanto eu voava... Os olhos de Samantha ainda reverberavam em minha mente e nas janelas e eu caía mais e mais e mais...

Enfim, um segundo antes de eu atingir o chão e o prédio do qual pulara terminar, fechei os olhos para nunca me esquecer daquele rosto que não pudera jamais me libertar...

Tiaggio
Enviado por Tiaggio em 23/06/2010
Código do texto: T2336505
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