PELA LUZ DE SEUS OLHOS

Trinta e tantos anos atrás, numa tarde ensolarada de verão, Clarice deixou sua casa, entrou naquele táxi e seguiu com Marcelo para morar em uma capital vizinha à sua cidade. Ia ao encontro do desconhecido, da realização de suas ilusões. A vida com as irmãs naquela cidade do interior, feita de conversas intermináveis nas calçadas e passeios quase diários na praça da catedral, há tempos não a satisfazia. Conhecera Marcelo há alguns meses, quando este chegara à cidade para tratar de negócios. Ela, que era conhecida como a mais namoradeira da paróquia, agora só tinha olhos para aquele homem, já maduro e tão envolvente. Muitos telefonemas e muitas cartas depois, ele, que morava no sul do país, conseguira sua transferência e estava ali para levá-la consigo. Já não tinha mais seus pais, assim nada poderia prendê-la àquela casa onde vivera toda a sua infância, juventude e bons anos da idade madura. Seu temperamento tímido e medroso também não foi barreira para seguir aquele homem que ela já amava intensamente. O amor falou mais alto e ela resolveu enfrentar todos os preconceitos que pudessem fazê-la desistir.

Em nenhum momento, apesar do questionamento dos irmãos, ela teve dúvidas de que era aquilo que queria. Na nova cidade, vida nova e diferente. Ter que cozinhar, ela, cuja experiência na cozinha não passava de um ovo frito. Ter que lavar roupa, ela que jamais estragara suas mãos numa lavanderia. Fazer amor, ela que até àquela idade permanecera virgem...

Tudo lhe parecia difícil e amedrontador naquela cidade: descer naquele elevador e sair para ir às compras era para ela algo tão penoso que lhe dava arrepios. E ficar sozinha durante todo o dia, esperando o marido chegar com a noite? Desesperador! Quando menos se esperava, chegava ela para passar uns dias em casa. Sentia falta da família, da festa que era encontrar os sobrinhos, as amigas. Estranhava a vida solitária naquela cidade tão grande e tão impessoal. E um dia, aproveitando a saída de Marcelo, tomou o primeiro ônibus e voltou de vez. Inúteis foram os chamados do marido: ela não o queria mais. Ou melhor, queria se ele viesse para a cidade dela. Mas como seria isto possível, se lá não havia representação da empresa em que ele trabalhava?

Marcelo, desiludido, voltou para o sul. Clarice retornou àquela vidinha insípida, e não teve outro jeito senão conformar-se com a falta de perspectivas tão comum nas cidades de interior. E os anos se passaram. Muitos anos. Até que um dia o telefone tocou e ela atendeu: era ele. Tudo voltou como um turbilhão. De longe vinha aquela voz que ela nunca havia esquecido: - Nunca te esqueci, Clarice. Quero muito voltar a te ver. - O tempo que passaram naquele enlevo foi impossível de calcular. E voltaram as cartas. Voltaram as ligações. Voltou a alegria da espera.

Porém, a idade já pesava bastante, tanto para ele como para ela, e a saúde já comprometera a visão de ambos. Aquelas cartas que iam e vinham enchiam de alegria aquela mulher, já avançada nos anos, mas com coração de menina. Trocaram fotos e a custo puderam ver as marcas que o tempo deixara em seus rostos.

O glaucoma, impiedosamente, foi tirando aos poucos a luz dos olhos de Clarice, mas a esperança de um dia voltar a sentir sua presença, seu cheiro, tornou-se a sua razão de viver. Quando tocava o telefone naquela casa e diziam: É Marcelo, sua fisionomia se iluminava e ela saia tateando as paredes até alcançar o aparelho. Foram ainda alguns poucos anos nessa vida de pequenas mas infinitas alegrias, até que, repentinamente, as cartas deixaram de chegar. Então vieram os dias de angústia, de vã espera: as cartas que ela enviava não tinham mais resposta, o telefone não mais tocava... Tudo indicava que ele partira para uma viagem sem volta.

Os dias de Clarice foram ficando cada vez mais sombrios e escuros: não havia mais a luz dos olhos, não havia mais a luz da esperança. A alegria se fora com ele, e a tristeza, em forma de lágrimas, era sua única companhia. E ela chorou todos os dias que lhe restaram de vida.

Natal, agosto de 2010.