Do amor à sobriedade.

Ao embalo daquele liquido inebriante eu comecei a noite. Naquele nevoeiro de vultos, vozes e cheiros, eu me sentia leve, muito leve, parecia-me que iria flutuar, e a sensação era muito boa. Entreguei-me ainda mais à aquelas sensações. Bebi ainda mais daquela água cortante que era, no inicio, tão áspera, cálida, que se faz careta ao beber. Mas que, agora, era tão doce e revigorante que estimulava, dava asas a minha imaginação e meus sentimentos afloravam por vontade própria, sem que eu pudesse dizer-lhes o que deixar, ou não, de fazer.

Caminhei. Andava leve, ou nem andava, pois não sentia meus pés e duvido que eles me sentissem também. Na sala onde – agora eu me encontrava – havia diversas pessoas, todas conhecidas de longa data. Nada de novo. Porém, a uns três passos dali, sentada em uma cadeira estava uma dessas conhecidas e estranhamente esta me chamava atenção. Nunca havia eu notado como era bela. Seu rosto jovem e delicado, assim como seus gestos, obra de digna admiração. Contemplei-a ali mesmo, encostado em um pilar qualquer e me demorei nisso alguns vários minutos sem me preocupar. Olhava sua pele clara, suas sobrancelhas finas, seu rosto juvenil.

Estava eu ainda nessa contemplação silenciosa e secreta quando aquela obra de arte ganhou vida e me lançou de seus lindos olhos um olhar despreocupado, quase que sem querer. De momento minha espinha gelou, não sabia se continuava a admira-la ou se mudava meu foco de visão, mas meus pensamentos e reflexos aparentemente não foram assim tão rápidos e aguçados. Por não saber o que fazer no momento continuei a apreciá-la dali, com meus olhos, e ela, com seus pequenos olhos femininos, decidiu que não iria parar de me observar tão logo.

Gastamos longo tempo de nossas noites – porém pouco de nossas vidas – naquela troca de olhares. Não me cansava. A cada minuto de observação descobria e apreciava cada detalhe mais. Até que para minha surpresa – sim, porque estava já em outro mundo que não naquele totalmente físico e terreno –, ela me chamou, com um gesto, para me sentar ao seu lado. Sem hesitar nenhum instante parti, caminhei um pouco e me sentei ao seu lado. Já nesse momento meu coração palpitava enlouquecidamente, mas ignoro por qual razão.

Beijei-lhe a face, naquele cumprimento ancião. Começamos a conversar. Falávamos de tudo, qualquer coisa que fosse era um bom ponto de partida para uma discussão animada e divertida. Notei, após algum tempo, que ela observava meu copo por longos segundos e pensei que isso a estava incomodando.

– Quer que eu pare de beber?

– De maneira alguma, gostaria apenas que um cavalheiro fosse me trazer uma bebida para acompanhá-lo – disse ela com um sorriso leve estampado em seu rosto lindo.

Sem demora sorri para ela e caminhei até o bar para lhe pagar uma bebida. Como ainda estava meio embriagado, foi difícil convencer o garçom que aquela bebida não era para mim – que, aliás, estava já com um copo cheio de novo nas mãos – e nessa demora a minha linda companhia cansou – imagino eu – de esperar e veio até mim no balcão do bar. Logo ao chegar perguntou ao garçom por que a demora para o drinque que eu havia pedido. Este corou um pouco e apressou-se em fazê-lo. Ri muito disso, porém para mim mesmo, reservei pra minha mente aquele riso e aquela situação cômica.

O drinque ficou pronto e começamos a beber juntos. A cada copo meu – e foram vários deles – me sentia mais hipnotizado. Sobre o que ela falava? Já não me importava mais, apenas admirava seus lábios vermelhos se movimentarem suavemente e emitirem um som suave, calmo, sem pressa para sair e bombardear-me com suas ondas cheias de palavras organizadas que, ao chegarem ao meu ouvido, embaralhavam-se novamente, pois já não podia compreender o que ela dizia. Ela com certeza havia notado isso, pois ria-se muito de mim e eu ria também, pego no embalo, eu ria de prazer. Era muito, muito bom estar ali com ela. Algum tempo depois, enquanto conversávamos – considere-se conversar: ela falava e eu escutava –, um sentimento louco tomou conta de meu corpo. Ficava cada vez mais incontrolável e, apesar de eu realmente não querer controlá-lo completamente, fiquei meio receoso. Segurei-me o máximo que consegui, mas era óbvio que não conseguiria isso a noite toda.

Agarrei-a com um abraço forte – muito forte – e preguei-lhe um longo beijo. Que sensação! Que delicia de beijo, me deleitei completamente. Seus lábios quentes e úmidos de encontro aos meus. Seu corpo, deliniado perfeitamente, eu pressionava tão fortemente contra o meu que parecia que íamos nos tornar um só – o que não seria nada ruim, pois não queria que ela saísse dali nunca. Depois de longos minutos, ainda aquele beijo me parecia rápido, apesar de muito presente em minha alma. Olhei-a com o sorriso mais aprazível de minha vida.

– Achei que iria demorar a noite toda – disse ironicamente aquela linda criatura.

– Juro-te que queria já ter feito isso logo que te vi – eu disse ainda na minha embriagues.

Ela sorriu. Olhamo-nos por um tempo até que ela pegou em minha mão e me conduziu suavemente para longe dali. Caminhamos pelos corredores escuros do local até encontrarmos uma porta de saída – tarefa que não foi nada fácil porque a essa altura já estávamos completamente embriagados. Saímos.

A noite estava extremamente fria e, talvez por conta disso, havia poucas pessoas na rua. Abraçamo-nos. Seguimos várias quadras não sei por onde. Era, como eu disse, conduzido as cegas, não sabia onde passava e nem para onde estava ela me levando.

Já estava ficando fatigado pela caminhada quando entramos por uma porta estreita de uma casinha de aparência bem antiga – descobri mais tarde que era sua casa. Ela abriu a porta e entramos ainda na escuridão.

Daquele momento em diante nenhuma luz se fez necessária que não a do luar. Agarrei-a e enchi-lhe de beijos e carícias – e o mesmo da parte dela. O fogo da bebida queimava ainda em nós e agora ardia ainda mais o nosso desejo. Não demoramos a ficar nus. Podia agora apreciar sua beleza em seu estado mais natural e belo. Sua pele branca, suas pernas um pouco delgadas e seus seios perfeitamente esféricos transmitiam o extremo de sensualidade. Sua boca vermelha, não por conta de algum acessório, e sim pelo realce proporcionado pelo contraste da brancura de sua pele com o rosado forte de seus lábios carnudos, transbordava amor. Beijava-me todo o corpo, assim como eu o fazia ao dela. Deleitava-me agradavelmente de imenso prazer.

A noite prolongou-se por várias e várias horas. Tudo começava e recomeçava, cada vez com uma nova sensação, cada vez um novo e diferente sabor. Eu, que já não estava em estado de embriagues, então pude aproveitar e me deliciar com a lembrança magnífica que aquela noite iria me suscitar de tempos em tempos. Gozamos daquela noite de amor até a exaustão física e deitamo-nos, acabados, com os corpos juntos um ao outro. Minha bela logo tinha adormecido e eu, porém, não conseguia pregar os olhos e nem os dentes que, como que débeis pelo momento, insistiam em mostrar-se para a escuridão em um largo sorriso de felicidade. Ficava a relembrar toda aquela noite, todo aquele momento, como alguma coisa que tivera seu acontecido há muito e torna-se a lembrá-la nostalgicamente.

Permanecia acordado, neste misto de sonho e realidade, quando olhei pela janela e percebi que já iria amanhecer. Procurei pelo chão frio meu relógio de punho para poder observar as horas e verifiquei que teria que partir, tinha que cumprir meu compromisso financeiro diário. Beijei minha bela ainda adormecida e parti.

Pensei nela o dia todo. Foi incrível como aquela noite me tornou tão dependente dela. Todos os meus pensamentos giravam em torno dela, meus desejos, minhas horas. Não via o momento de sair daquela atividade mecânica desprezível que me ocupava todos os dias para encontrá-la. Durante aquelas oito horas sentia seu cheiro em minha mente e me extasiava, chegava até a esquecer o que estava fazendo e as obrigações que tinha de terminar. Todos me perguntavam o motivo de eu estar aéreo ou inebriado daquela forma, mas só podia responder com um sorriso e, mesmo assim, todos pareciam compreender pois sorriam também, como que satisfeitos por mim.

Finalmente aquela minha rotina se cumpriu. Sai apressado da fábrica, queria encontrá-la. Fui para casa e tomei uma ducha merecida, perfumei-me e me deixei apresentável ao máximo, tudo para revê-la. Na ultima vez em que olhei para o relógio este marcava oito horas e alguns minutos – perdidos nos ponteiros – da noite. Sai.

Caminhei – ou melhor, corri – até a sua casa. As luzes da casinha estavam acessas, fiquei um pouco nervoso, mas isso não me impediu de bater a porta. Sem demora ela saiu à janela.

– Boa noite! – sorria.

Estava linda. Embasbaquei-me em vê-la e fiquei por certo tempo paralisado a contemplar sua imagem.

– Boa noite! – respondi eu sem saber exatamente o que fazia.

Ela então saiu da janela e veio em direção à porta. Abriu.

– O senhor precisa de alguma coisa? – disse ela com toda sua simpatia.

– Sim. Preciso de você!

– Como? – disse-me ela com tremendo espanto.

– Preciso de você! – respondi novamente com total desespero. – Preciso de você assim como ontem, naquela noite linda de amor. Preciso de seu corpo, de sua presença, do seu amor.

Nem havia eu terminado de dizer estas palavras e ela já estava fechando a porta. Foi muito rápido, não pude impedi-la. Fechou-a e correu para a janela apenas para me proferir injurias diversas:

– Quem você pensa que é? Vem até a minha casa e me falta com o respeito desta maneira? Nem nos conhecemos, seu louco, louco! – disse gritando bem alto e bateu a janela.

Meu coração parou. Eu tremia, tremia muito. Não sabia o que fazer, não sabia o porquê de ela ter agido de tal maneira. Fiquei paralisado por um instante até notar que toda a vizinhança havia saído de suas casas para checar o que era aquela confusão que eu havia causado. Sem perder tempo decidi correr para casa. Corri muito, não precisava correr, mas corri. Corri até que minhas pernas começassem a queimar e enrijecer. Cheguei em casa completamente exausto e me joguei no sofá. Pensei, pensei e pensei. Quando por fim me dei conta do que havia ocorrido chorei. Chorei a noite toda, de todos os dias. Já não ia mais ao trabalho, apenas ficava em casa, sentado a me lembrar daquelas lembranças magníficas e daquela segunda noite terrível, de perda, de dor. Sempre começava a me lembrar sorrindo e terminava chorando feito criança, não sabia mais o que fazer. Me perguntava o porquê, por que ela não podia lembrar daquela noite, por que a bebida privava ela de lembrar-se de mim e isso me doía, doía muito. Eu estava em pedaços.

Após duas longas semanas resolvi sair de casa. Sai e apenas confirmei que o trabalho que outrora me ocupava o dia todo já não o faria mais. Sai e todos perguntavam por onde andei, se viajei ou se estive doente. Nunca menti em minha resposta, contava a todos toda aquela história e muitos de meus amigos me julgaram louco ou com alguma incapacidade mental momentânea. Naquela mesma tarde fui até a feira, pois precisava comer algo, e, andando pelas barracas dispersas, encontrei-a. Viu-me e pôs-se a correr. Não fui atrás, era dor de mais pra mim, não suportaria mais uma rejeição subseqüente a rejeição suprema.

A cada dia a dor aumentava mais e mais. Já não podia mais suportá-la sozinho e afoguei-me nos vinhos e em qualquer bebida que se incendeia com alguma fagulha que se desprende no ar. Já não vivia totalmente em consciência. Quando eu ameaçava retomá-la corria e bebia outra garrafa, pois com a consciência vinha a lembrança e com a lembrança vinha a dor, aquela dor fulminante que rasgava meu peito. Então bebia ainda mais, bebia até ficar desacordado, bebia pensando que, se com todo aquele álcool em mim, alguma fagulha pudesse me incendiar e me fazer desaparecer daquele lugar. Mas nunca havia coragem para a fagulha, então bebia, diluía a minha existência naquele liquido ardente que outrora me trouxera o prazer sublime com a mulher mais bela e agora me trazia o abrigo, me mantinha protegido das lembranças.

Assim passo eu agora todos os dias da minha vida, com uma garrafa de vinho sempre a mão, sempre perambulando entre as multidões, entre as casas e festas que outrora eu podia freqüentar. Sempre com a esperança de minha embriagues me propiciar um novo encontro com ela, uma nova chance, um novo ápice de amor e de prazer, nem que seja apenas por uma noite, nem que seja uma forte dor de cabeça a única lembrança desta. Bebo.

Vinicius de Andrade
Enviado por Vinicius de Andrade em 28/10/2010
Reeditado em 09/10/2011
Código do texto: T2583423
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