“Concordiam nutrit amorem”

Esta história aconteceu na Idade Média onde a lenda e a realidade se misturavam de tal forma que ninguém conseguia distinguir uma da outra. Contou-a um peregrino que costumava ir todos os anos à Catedral de Canterbury, na época dos festejos de comemoração da morte do santo chamado Thomas Becket. Eu gostei muito dela e resolvi recontá-la do meu jeito.
Ela fala de um valoroso cavaleiro que caiu em desgraça frente ao rei do seu país e dos seus pares de cavalaria. A razão da sua desgraça foi o fato de ele ter quebrado as regras da instituição, tratando com descortesia uma das damas da corte.
A mulher, naqueles tempos, era como uma flor e uma deusa. Como flor devia ser protegida; como deusa devia ser venerada. Ela era o motivo e a inspiração de todas as aventuras cavalheirescas. Todo cavaleiro que se prezasse tinha que ser protetor de uma dama.
As regras da cavalaria eram muito severas com respeito ao tratamento que se devia dar a uma mulher. Nenhum cavaleiro podia ser descortês com uma dama. Ele devia, ao invés, protegê-la e honrá-la.
Foi exatamente nisso que o nosso cavaleiro falhou em fazer. Não se sabe por que cargas dágua ele foi descortês justamente com uma das aias da rainha, recusando-se a protegê-la (que era a mesma coisa que namorá-la)
Julgado e condenado pelos seus pares, ele foi destituído do seu título de cavaleiro e condenado à morte. Essa era a lei. Somente um indulto dado pelo próprio rei, ou pela rainha, podia salvá-lo.
Como o seu crime havia sido cometido contra uma das damas da corte, o rei delegou à rainha a pronúncia da sentença. E ela, depois de muito confabular com suas aias, decretou: “Infeliz cavaleiro, como você ofendeu uma mulher, sua vida agora está nas mãos delas. Você terá que encontrar a resposta certa para uma pergunta que eu vou lhe fazer: O que as mulheres mais desejam na vida? Se você conseguir encontrar uma resposta que me satisfaça, sua vida será poupada e seu título devolvido. Mas se ela não me agradar, então será decapitado. Você tem um ano para achar essa resposta”.
O cavaleiro saiu pelo reino afora perguntando a todas as pessoas que encontrava: o que as mulheres mais desejam na vida?
– O que as mulheres mais querem na vida são dinheiro e joias – respondeu um comerciante.
– O que as mulheres mais desejam é serem bonitas para agradar aos seus amantes –, respondeu um cortesão.
– O que as mulheres mais desejam é arranjar um bom marido – respondeu uma solteirona.
– O que as mulheres mais desejam é ter belos e robustos filhos – respondeu uma senhora, mãe de muitos filhos.
– O que as mulheres mais desejam é ter uma casa e uma família – respondeu outra mulher.
– O que as mulheres mais desejam é serem felizes – respondeu um homem tido como muito sábio.
Foram muitas as respostas que o cavaleiro colheu nas suas andanças pelo reino, mas nenhuma lhe pareceu satisfatória. Eram muitos os desejos manifestados pelas mulheres e nenhum deles parecia atender a todas.
“Quem consegue entender as mulheres?”, pensou desconsoladamente.
O tempo concedido pela rainha estava acabando. Restavam poucos dias e ele já estava conformado em perder a vida, pois sentia que jamais encontraria uma resposta satisfatória para a pergunta que a rainha lhe havia feito. As mulheres eram imponderáveis, incompreensíveis, impossíveis de contentar, concluiu. Cada uma queria uma coisa diferente. Não havia consenso possível.
A caminho do castelo, onde finalmente seria executado, o cavaleiro encontrou uma velha senhora. Era a mulher mais feia que ele já vira na vida. Rosto enrugado como um pergaminho, nariz adunco como o bico de uma águia, um único dente apodrecido na boca, uma enorme verruga no queixo. A velha devia ter menos uns cem anos de idade. Andava manquitolando, se apoiando num bastão.
– Por que esse ar de desespero, cavaleiro? – perguntou a velha. – Parece que está indo para o patíbulo.
– Pois adivinhou, minha velha. É isso mesmo. Estou a caminho da minha execução. Amanhã, a esta hora, minha cabeça será decepada e pendurada num poste.
– Que crime você cometeu?
– Por que não consegui encontrar uma resposta para uma pergunta boba que a nossa rainha me fez, serei obrigado a entregar a minha própria vida – respondeu, tristemente, o cavaleiro
– Que pergunta foi essa? Diga-me, talvez eu possa ajudá-lo a responder.
– Impossível. Há um ano peregrino pelo país inteiro. Interroguei milhares de homens e mulheres, e também sábios e estudiosos, mas ninguém conseguiu dar-me uma resposta satisfatória. Como uma velhota como a senhora poderá dá-la?
―Qual a pergunta? ― insistiu a velha.
― O que as mulheres desejam mais?― disse o cavaleiro.
―Sou idosa e já vivi o suficiente para saber de coisas que ninguém mais sabe – respondeu a velha. Eu sei a resposta para essa pergunta, mas em troca dela você terá que me prometer tudo que eu lhe pedir. Aceita essa condição?
― Que remédio. É a minha própria vida que está em perigo. Se a senhora tiver essa resposta farei qualquer coisa que me pedir – respondeu o cavaleiro.
Então o cavaleiro desceu do seu cavalo e velha sussurrou algumas palavras no seu ouvido.

Chegou finalmente o momento em que o cavaleiro teria que responder à pergunta feita pela rainha. Lá estava ele na frente de toda a corte, com a rainha e suas damas de companhia como componentes do tribunal. Elas é que dariam o veredicto final.
– Diga-nos, então, cavaleiro: o que as mulheres mais desejam na vida?
– Majestade – respondeu o cavaleiro – o que as mulheres mais desejam na vida é serem donas de suas próprias casas e rainhas em seus próprios espaços. Elas querem que seus maridos e filhos as respeitem e façam aquilo que elas querem.
A rainha e suas damas se reuniram e confabularam. Depois de alguns minutos de muitos risos e discussão, a rainha voltou-se para a corte e disse:
– A resposta do cavaleiro está correta. Ele está livre e os seus títulos serão todos devolvidos.
Nesse momento entrou no salão a velha senhora.
– Majestade – disse ela. – Fui eu que ensinei a esse cavaleiro a resposta que satisfez Vossa Graça. Em troca ele se comprometeu a casar-se comigo. Faça com que ele cumpra a promessa.
– Você prometeu isso? – perguntou, rindo, a rainha.
– Infelizmente sim, majestade. E agora não sei se fiz bem em trocar a minha vida por esse destino – respondeu, desconsolado, o cavaleiro
– Promessa de cavaleiro é dívida inegociável – respondeu a rainha. – Agora deve cumpri-la.

O cavaleiro e a velha se casaram. Na noite de núpcias o cavaleiro preferiu ficar no pátio do castelo velando suas armas, como era costume entre os membros daquela veneranda instituição. A velha noiva, vendo que o marido não aparecia para consumar o casamento, foi ter com ele no pátio.
– Por que você não veio fazer amor comigo? – perguntou a velha. – Acaso pensa que eu não serei capaz de dar-lhe prazer como faria uma noiva jovem?
– Você não pode mudar a sua idade nem a sua aparência, minha velha –, respondeu o cavaleiro. ― Como poderá corresponder ao amor de um jovem como eu?
Então ela começou a falar. Falou das leis da natureza e das maravilhas que elas fazem com as pessoas que se amam de verdade. Disse que o Amor reconstitui as forças perdidas e recupera o frescor da pele envelhecida; que devolve a força aos músculos combalidos e faz o sangue circular com mais força nas veias. Que trás de volta a luz nos olhos e o brilho do sorriso. E enquanto ela falava, o cavaleiro olhava fundo nos olhos dela. E neles brilhava, cada vez mais intensamente, uma estranha luz. E ele não tirava os olhos do seu rosto. E à medida que ela falava, e ele ouvia, uma transformação ia ocorrendo no rosto e corpo da velha noiva. Em pouco mais de alguns segundos, diante do atônito cavaleiro, estava a jovem mais linda que ele já vira.
– Você deixará que eu governe a nossa casa e ouvirá os meus conselhos? – perguntou a jovem, que na verdade era uma fada.
– Sim – disse o cavaleiro – porque ninguém melhor que o Amor pode governar uma casa. Ele não conhece tempo nem idade. Ele não faz caso de aparência e dificuldades. Enquanto nos amarmos seremos puros; enquanto formos puros seremos jovens; enquanto formos jovens seremos belos. Na verdade, agora eu sei o que você queria dizer: o que as mulheres realmente mais desejam (e os homens também), é amar e ser amados. E que seu amor seja respeitado e receba o devido valor. Obrigado por ter me ensinado isso.
E então o cavaleiro e a fada se amaram a noite inteira e depois foram felizes para sempre.






João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 17/11/2010
Reeditado em 17/11/2010
Código do texto: T2620487
Classificação de conteúdo: seguro