Aos olhos de quem ama.

Sou uma vítima do destino. Um homem aprisionado numa cena que o tempo não quer apagar.

A famosa cena começa sua seqüência no baile dos soldados da Segunda Grande Guerra, onde mensalmente celebravam a chegada daqueles que aparentemente nada tinham sofrido e choravam a partida daqueles que haviam sido convocados para frente de batalha. O ano era 1943, a cidade era Londres e eu sou Paré.

Estávamos todos juntos numa mesa, deviam ser eu e outros sete infortunados com a última noite antes da partida para os campos de morango, nossas garotas estavam conosco, alguns mais preocupados em deixá-las outros menos, era difícil saber o quanto as queríamos em tempos como aquele. Eu estava bem, havia conhecido na Brompton Road, após sair da estação uma garota chamada Lizandra, Liz para mim e seus 24 anos de cabelos ruivos, corpo definido e universidade e assim éramos a semanas.

Mas alguém tinha que começar a falar em casamento e na possibilidade de não voltar, como se não soubéssemos, mas o pior foi quando disseram a Liz que desse mal ela não sofreria nem se eu morresse, nem se eu voltasse. Ela não tinha um gênio muito fácil e se irritou tanto que não agüentou as provocações e saiu correndo, vendo que eu não a defendia e ficava na minha própria defensiva, a verdade é que estava confuso, sem saber se aquilo era verdade ou não.

Não demorou, corri atrás dela e meus amigos perceberam o quanto a haviam magoado com o silêncio que se formou após o ocorrido. Na rua consegui alcançá-la, mas ela não queria ouvir qualquer palavra que fosse, me mandando voltar para junto da gangue e que fosse feliz quando voltasse, mal pude falar qualquer coisa e ela correu para o meio da rua e ao atravessá-la, apenas fez um brusco movimento rente a calçada, olhou para trás e pronunciou algumas palavras que eu não entendi, porém quando estava a alguns metros dela, um carro apareceu do nada voando com toda sua potência e lataria para subir na calçada e levá-la com ele.

Fiquei em choque por um tempo, parado na via com os pés fincados no asfalto, olhando para frente como se ela ainda estivesse lá me esperando para ouvi-la. Na verdade ainda estou lá e não importa para onde quer que eu vá, a verdade é que ainda estou lá.

A partir daí, o sol raiou mecanicamente e todas as coisas passaram a ser assim para mim, indo para guerra nessa manhã e já mais traumatizado do que com qualquer coisa que pudesse me acontecer lá. Os rapazes perceberam e ninguém falou mais nada, esse era o código combinado se houvesse baixas em nosso meio.

Os lugares para onde fomos eram feitos de cinzas e resquícios de vida com anjos decaídos transformados em estátuas e ruínas, mas eu sabia que merecia estar ali.

No meio da batalha era só mais um boneco que se movia para frente sem saber direito o que fazia, não estava lá realmente, meu pensamento era meu mundo e esse estava com Liz, o que ela teria dito, pensando nas várias versões do que poderia ter sido hora zangada, depois tímida, só desdenhando, mas a verdade é que eu não sabia e isso me matava por dentro de curiosidade e desejo de estar com uma mulher morta. Inconscientemente estava tentando me matar por fora também, era como um kamikaze, aceitando todas as missões mais suicidas possíveis, sem ver os riscos que representavam e nessas horas eu a via me chamando e dizendo as tais palavras que me levariam cedo ou tarde.

Foi desse jeito que salvei um amigo no meio do campo de batalha numa chuva de balas prateadas que não tinham rumo certo, quando ninguém mais faria. Foi assim também que salvei todo o pelotão quando peguei uma granada com as mãos, atirada bem no nosso meio e joguei de volta aos inimigos. Ganhei respeito entre os homens e era conhecido como Mad Men, mas todas essas ações era ela me chamando, não queria que levasse os homens errados à cova rasa quando deveria levar um só, os rapazes davam graças por isso.

Mas não deu certo, porque a guerra não conseguiu acabar com meu estranho sentimento de culpa, desejo e curiosidade. Voltei para Londres com as mesmas dúvidas e retrospectivas daquele dia em que a deixei, pensando mais fixamente em suas últimas palavras, sempre procurando, mas nunca encontrando olhares iguais aos que eu vi em Liz. Talvez seja coisa minha, talvez só um sentimento que cresce por não ser preenchido como o fogo ardente de um incêndio que pouco a pouco alimentado esfriaria e seria pó e cinzas de manhã.

Foram tempos e dias e horas procurando pelo impossível até que após tantas tentativas de morte frustrada, fui atravessar uma rua sem qualquer intuito de nada fazer e no meio dela de repente vi um clarão e depressa fechei os olhos para diminuir o impacto. Alguns segundos após, nada de fato aconteceu e fui abrindo os olhos devagarzinho, como se pudesse ter a pior das impressões em contar mal o tempo, e eis que era noite e ela estava diante de mim, ainda com o susto e o clarão se aproximando puxei-a pelo braço, desviando-nos do carro que dessa vez bateu direto num poste que se encontrava a frente.

Ela quis olhar o ocorrido, mas eu pensando ser um momento único de mágica ou milagre, talvez loucura de um homem obsessivo a segurei firme pelos cotovelos e perguntei:

- O que você disse?

Liz insistiu em ver o que acontecia, mas eu estava irredutível e repeti a pergunta.

Ela então respirou fundo e repetiu as santas palavras:

- Eu disse seu desgraçado, amanhã você ainda vai me amar!

Nesse momento eu já ria irônico e louco quando saciado e livre do pior sentimento que havia na Terra, opinei sobre aquilo.

- Se fosse num dia há dez anos eu desdenharia e daria razão a eles, só para não lhe dar o gostinho, mas hoje eu digo sim, você está certa. - gritei.

Ela não entendeu nada e ambos permanecemos abraçados, quem sabe para sempre na cena que voltou a se congelar no tempo, agora certa, disforme e amarelada no álbum de história da família de alguém.