ALMOÇO DE DOMINGO

ALMOÇO DE DOMINGO

No momento em que subiam as escadas ouviram o murmúrio de duas senhoras: “Aqueles pombinhos estão juntos e os pais nem se deram conta”. Entraram na Igreja e decidiram sentar-se na última fila com o propósito de não se encontrarem com seus amigos do Clube de Golfe. Assim mesmo, nos assentos do outro lado da Igreja, puderam escutar como alguns diziam: “Eles estão namorando, e esses aí nem sabem”. A senhora Gertudres e o senhor Felisberto não puderam suportar tamanho vexame e preferiram retirar-se antes que se terminara a eucaristia.

Ao chegarem a casa, o Sr. Felisberto dirigiu-se abruptamente ao quarto de Eduardo André, e com uma postura de quem estava aplicando uma ordem judicial, começou seu discurso:

- Você é bisneto de um dos fundadores desta cidade, neto do juiz mais prestigioso desse país. Eu sou um conhecidíssimo advogado, meu filho. De hoje em diante você está proibido de manter relações de amizade com qualquer pessoa alheia ao nosso nível e a seu grupo de estudos. E se não está satisfeito com minhas normas, a porta estará bem aberta!- falou-lhe apontado a porta de saída do quarto.

Eduardo André nada lhe respondeu, estava acostumado a receber uma rígida educação. Entrar a estudar a carreira de Direito foi sem direito a outra escolha. Cresceu entre meio de livros de História da mãe, a balança do pai e o martelo do avô. Eduardo sentia desejo de conhecer o mundo e descobrir qual era sua verdadeira vocação. As palavras de seu pai foram tomadas em sério. Preparou suas malas e saiu por aquela porta. O pai, atônico, pensou que se tratava de um capricho, uma teimosia de adolescente mimado e que pronto voltaria para o aconchego de seu quarto. Gertrudes e Felisberto se sentaram no sofá e esperaram. Passaram-se horas, dias, semanas. Nunca mais aquela porta voltou a abrir-se.

Eduardo, com o pouco dinheiro que a própria mãe lhe passou, tomou um ônibus e viajou por 12 horas até chegar a uma grande capital. Sentou-se no terminal rodoviário e não se moveu. Estava com muito medo, não sabia o que fazer, não tinha para onde ir. Depois de três dias sendo observado pelos olhares atento de uma mulher bem madura, ela se aproximou e lhe perguntou se necessitava hospedagem. Seu aspecto evidenciava seu oficio: trejeito de sensualidade com preço, desvalorizado, por sua avançada idade. Não tendo outra opção, decidiu aceitar o convite. Ao entrar em sua casa, havia duas crianças pequenas que a esperava.

- Quem alimenta dois netos tem para alimentar mais uma boca!- falou Dorotéia.

Serviu-lhe um prato de arroz com um pouco de feijão. Eduardo saboreou cada grão como se fosse o manjar dos deuses. Aquele prato profano, temperado deliciosamente com alho, cebola e manjericão, foi a única coisa que pôde alimentar seu estômago e sua alma depois de três dias sem nada comer. Entendendo que a boa vontade não acompanhava as condições de Dorotéia, ao outro dia a acompanhou para seu primeiro emprego.

Numa pequena lanchonete instalada no subterrâneo de uma galeria, Eduardo começou a trabalhar de faxineiro. Trabalhava o dia inteiro em troca de um pequeno valor ao final de cada dia. Era pouco, mas com a ajuda de sua amiga Dorotéia fazia-se muito.

Certo dia, um grupo de estrangeiros se perdeu e terminaram no subsolo daquela galeria. Estavam desesperados porque ninguém os entendia. Eduardo se aproximou e começou a conversar com o grupo. Naquela lanchonete fez-se um silêncio absoluto. Todos se olharam e ficaram estarrecidos com a fluência do inglês de Eduardo. Em poucas horas todos os locatários daquela galeria souberam do acontecido e começaram a aparecer novas propostas de trabalho. O dono da pequena lanchonete já tinha percebido que a educação daquele rapaz não estava acorde ao seu local. Deu-lhe as mãos e lhe desejou boa-sorte.

Trabalhando em vários restaurantes como ajudante de cozinheiro, começou a submergir-se num mundo de cores e sabores. Descobriu que preocupar-se pela apresentação de um prato fazia uma especial diferença ao levá-lo à mesa. Os pequenos detalhes aromáticos, a seleção e combinação dos ingredientes, um sutil toque na mescla dos alimentos, tudo causava um efeito imediato no paladar dos clientes. Eduardo descobriu qual era seu verdadeiro talento: a arte culinária.

Já estando estabilizado economicamente, matriculou-se num Curso de Gastronomia e com os anos converteu-se num profissional altamente qualificado. Passou a trabalhar para restaurantes de renome internacional e luxuosos cruzeiros marítimos.

Um dia Eduardo sentou-se no sofá e começou a refletir sobre sua vida. Sentia uma profunda gratidão por seus pais. Reconheceu que teve uma infância distinta à grande maioria das crianças. Pôde estudar nos melhores colégios, teve uma educação com sólidos valores. Com seu pai aprendeu que o significado do trabalho e da dignidade na vida de uma pessoa, e que a recompensa chega se agimos com respeito, honestidade e esforço. Valores estes que contribuíram para que se tornasse um grande profissional. Havia chegado o momento de fazer uma ligação telefônica.

Naquele fim-de-semana, a casa do senhor Felisberto e da senhora Gertrudes, se transformou num verdadeiro dia de festa porque Eduardo André iria acompanhá-los para o almoço dominical. A senhora Gertrudes saiu especialmente para comprar os ingredientes para a preparação do prato preferido de seu filho.

-Hoje vai comprar quiabo dona Gertrudes? Mas a senhora sempre me diz que seus netos não gostam de quiabo!- disse o feirante.

- É verdade, seu Joaquim! Meus netos detestam quiabo, mas meu menino adora, e hoje ele vem almoçar comigo. Meu menino é um importante Chefe de Cozinha internacional e até já fez cursos de sommelier,o senhor sabia? – contou-lhe com o peito cheio de orgulho.

Naquela casa se sentiu um aroma muito especial: olor de comida caseira, cheirinho de frango com quiabo que só mesmo mão de mãe para saber cozinhar. Nem o melhor gastrônomo seria capaz de encontrar este ingrediente secreto, porque amor não se vende nos empórios.

Depois de mais de quinze anos aquela porta voltou a abrir-se.

Viu-se naquela casa um abraço de mãe que acolhe, aceita, compreende, porque pariu aquele menino.

Viu-se naquela casa um abraço de filho que a perdoa, que a entende, porque é menino que saiu daquele ventre materno.

Almoço de domingo, em família, com sabor a reconciliação.

- Mãe, a senhora me ensina a cozinhar esse frango gostoso com quiabo?

Nota: Dedico este texto a um grande amigo que depois de tantos anos voltou a sentar-se à mesa com seus familiares. Santa profana que lhe deu um pedaço de pão. Inspirado numa história real.

Millarray
Enviado por Millarray em 23/02/2011
Reeditado em 03/03/2011
Código do texto: T2810428
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