1° Capítulo

Essa noite eu tive um sonho incomum, onde eu caminhava descalço em um lugar escuro e molhado, onde eu não podia ver um palmo a minha frente, mas era possível ver a água parada cobrindo os meus pés e eu não conseguir parar de olhar para eles. Logo a água começou a evaporar, muitas luzes começaram a vir em minha direção de forma sincronizada, como se estivessem dançando para mim e eu não sabia como reagir em meio aquilo, era estranho e ao mesmo tempo tão lindo, luzes que mesclavam entre as cores verde, azul e rosa e que dançavam juntas e se uniam resultando em diversas cores. Eu decidi então me aproximar delas e quanto mais eu me aproximava, mais elas tomavam formas e quando dei por mim, logo eu estava rodeado por bailarinas, que dançavam de forma delicada em meio a uma doce melodia. Uma em si me chamou atenção, na verdade era a única que eu podia ver sua face e ela era linda, mas não me lembro de já tê-la visto antes, eu só sabia que não conseguia parar de observá-la, isso até meu celular decidir tocar e meu sonho ir por água abaixo… é hora de trabalhar.

Chega a ser estranho como certos dias amanhecem simplesmente sem inspiração alguma, hoje ao que parece é um desses dias, onde a minha lente não consegue encontrar um bom foco, as cores parecem não andar em sintonia e a natureza parece não querer colaborar muito. Em momentos assim eu procuro não forçar muito, apenas procuro fazer algo diferente para que o dia passe logo e a inspiração volte, confesso que aquele sonho não me sai da cabeça, aquele rostinho angelical dançando e sorrindo pra mim, de onde eu a conheço? Eu não posso ter criado um alguém assim em meus sonhos, isso seria impossível, não seria?
Bom, antes de começar a enlouquecer, é melhor eu ir almoçar, pois, já deu o meu horário e o meu restaurante favorito me espera. Ao chegar, logo me sento no mesmo lugar de sempre e peço também o mesmo de sempre, a garçonete já me conhece e enquanto eu a espero trazer os meus frutos do mar e um bom vinho branco, aproveito para ver na agenda do meu celular os próximos compromissos e ao que parece hoje o meu dia acaba mais cedo, o que me agrada bastante em meio a um dia sem grandes inspirações. Logo a garçonete aparece e ao olhar pra ela, minha visão periférica é convidada por um outdoor que é possível se ver através do vidro do restaurante, que nos permite ter uma ótima visão da avenida e ao ver aquilo, muitas perguntas foram respondidas, nele havia um anuncio de um grande musical e na imagem, muitas bailarinas sorrindo anunciando um evento que será exatamente hoje à noite. Em meio a tudo aquilo, acabei me esquecendo da garçonete, que teve que chamar a minha atenção de uma forma que eu pudesse notá-la, eu logo a agradeci e comecei a sorrir sozinho, ela sem entender nada, apenas se retirou. Apos terminar, me levantei e quando eu já estava passando pela porta, algo me chamou atenção, numa cadeira em uma das mesas, alguém havia esquecido uma espécie de diário, olhei para um lado e para o outro, mas o restaurante já estava praticamente vazio, então, eu decidi pegá-lo, até pensei em deixá-lo na recepção, mas não costumo confiar muito e eu não iria gostar que qualquer um achasse meu diário, então apenas o peguei e saí.

                                      2° Capítulo

Chegando ao meu estúdio, aproveito para trocar a lente da câmera antes da próxima sessão, o diário sobre a mesa não para de chamar minha atenção, então, eu logo o abro no objetivo de procurar algum contato que me leve até o paradeiro de sua dona… sim, porque pelos detalhes em rosa e toda a delicadeza que havia nele, só podia ser de uma mocinha. Abro à primeira pagina e nada de números ou endereço, mas me deparo com uma bela poesia, cheia de reflexões, sentimentos e sensibilidade, lindas palavras que falavam justamente sobre inspiração, o que me faltava hoje, confesso que ao ler aquilo, um mar de inspiração ferveu em mim. Logo fui mudando as paginas e eu sempre acabava me deparando com pensamentos e poesias que mexiam muito comigo, ela era dona de idéias únicas, uma forma de ver o mundo um tanto agradável e eu estava encantado com suas palavras e enquanto eu procurava mais poemas e pensamentos, acabei achando um numero de telefone, isso já na contracapa, o que me fez perceber que acabei lendo boa parte de seu diário, o que não me orgulho muito, mas acho que ninguém pode me culpar e ela também não precisa ficar sabendo. Logo liguei e uma voz doce atendeu, eu logo disse a ela o motivo de eu ter ligado, confesso que nunca alguém me agradeceu tanto quanto naquele momento, onde de acordo com ela, ali estavam coisas muito importantes e que ela já estava desesperada atrás desse diário. Logo decidimos marcar um lugar onde eu o pudesse estar levando para ela, o lugar que ela citou me surpreendeu: “Hoje à noite na porta do teatro O Canto do Cisne”.
Isso não seria tão surpreendente, não fosse por ser exatamente onde aconteceria aquele mesmo evento das bailarinas divulgado pelo outdoor, isso já está virando um karma pra mim. Antes de ir, eu ainda tinha uma ultima sessão e graças a toda aquela inspiração ganha em meio a tantas belas poesias, fora uma de minhas melhores sessões, algumas fotos foram até cotadas para serem expostas em um grande evento de fotografia em um futuro próximo. O tempo passou e logo a lua deu o ar de sua graça, me preparei então para ir levar o diário e já a caminho do evento, meu celular tocou, era a mocinha do diário, dizendo para eu ir até a portaria e dizer meu nome, o resto era com ela. Aquilo me surpreendeu um pouco, mas fiz o que ela pediu e ao chegar a postaria e dizer o meu nome ao segurança, ele me entregou um bilhete e me acompanhou até uma cadeira já dentro do teatro… eu ainda não estava entendendo nada, logo às luzes se apagaram e o show começou. Solos de violino tomaram conta do teatro e muitas bailarinas entraram no palco, onde dançavam graciosamente e em meio a tudo isso, o mais improvável aconteceu, era ela, aquele rostinho angelical, aquele sorriso, aquela moça linda dos meus sonhos, ela estava ali, a minha frente dançando sobre o palco… eu não sabia mais o que pensar, como pode isso ser possível?
Acompanhei toda a peça atenciosamente, um dos momentos mais inspiradores da minha vida eu devo confessar, logo as cortinas se fecharam e eu tinha que falar com ela e quando eu ia saindo, o segurança me chamou atenção, disse que alguém queria me ver, foi então que me lembrei do diário. Ele pediu para que eu o acompanhasse e foi o que eu fiz, eu olhava de um lado para o outro a procura da bailarina, mas ela não parecia estar em lugar algum, foi quando uma voz chamou por mim, aquela mesma voz doce do telefone e ao olhar pra ela, senti o chão fugir dos meus pés… era ela, a garota dos meus sonhos, a bailarina, ali na minha frente e o diário era dela. Ela olhou para o diário em minhas mãos e sorriu, eu o entreguei em mãos e ela mais uma vez me agradeceu, eu não sei o que dizer, se eu disser tudo o que tenho em mente, ela vai me achar um louco… Ela então disse:

-Você não esperava por isso, não é mesmo?  Espero que tenha gostado.
-Muito pelo contrário, você não sabe o quanto eu esperei por isso e sim, eu gostei, foi lindo, um sonho eu diria.


                                      3° Capítulo



Querido diário, hoje eu tenho tanto a dizer, eu precisava muito desabafar, enfim chegou o grande dia e eu ainda não me sinto preparada pra dançar. Querido diário, as cortinas se abriram, meus pés latejam e não se movem um centímetro se quer, minha respiração está ofegante, minhas mãos estão suando frias e o mundo inteiro parece estar olhando diretamente para mim, é como se estivessem esperando um lampejo, uma falha minha. O som delicado dos violinos dá lugar a um som estridente, o bastante para incomodar os meus tímpanos e fazer minhas orelhas sangrarem, a dor logo dá lugar ao silêncio, eu já não posso ouvir mais nada, mais ninguém. Na platéia todos parecem estar cochichando e olhando para mim e em uma tentativa de fuga, eu tento correr, mas a cortina se fecha me cobrindo por inteira. Com minhas mãos eu tento me livrar dela, mas quanto mais eu tiro, mais ela parece maior, um mar de vermelho sem fim sobre mim e eu mesma não consigo ouvir o meu grito de socorro… Até que de algum lugar eu pude ouvir uma voz, que cada vez mais se aproximava e eu mais e mais tentava ir de encontro a ela… “Filha, acorde!”

Fora apenas um sonho, um pesadelo eu diria, minha mãe está preocupada, há dias eu não consigo dormir ou comer direito, toda essa pressão não está me fazendo bem. Logo haverá um grande evento, na qual venho me preparando exaustivamente para que dê tudo certo e eu tenho apostado tudo nisso. Eu poderia dizer que venho me preparando para isso há um ano, onde fui convidada para participar, mas vai muito, além disso. Durante toda minha vida sonhei em ser uma bailarina, poder dançar em grandes palcos, para grandes públicos e durante as minhas fantasias, o meu pai era a minha grande platéia. Eu via a admiração em seus olhos, a forma como ele torcia por mim, como ele vibrava a cada conquista minha, meu grande herói. Sempre andávamos juntos e sempre passávamos em frente ao teatro “o canto do cisne”:

- “Pai, será que eu poderei dançar aqui um dia?”
-“Um dia eu estarei lá dentro te aplaudindo de pé, e mesmo que isso não aconteça, você sempre será a minha menina bailarina”.


Mas logo em minha primeira grande apresentação em um teatro infantil, meu pai teve um infarto, vi todos na platéia se aglomerarem em cima dele e um grito ensurdecedor tomou conta do lugar.

“PAAI!”

Era eu… vendo-o desabar sobre o chão e os para médicos tentando reanimá-lo, mas já não havia mais o que fazer, eu acabara de perder meu grande herói e desde então eu passei a me dedicar arduamente à dança, não pensava em outra coisa, mas com tudo aquilo, eu já não conseguia mais subir nos palcos, sempre que eu piso em um, sinto a minha visão embaçar, fico tonta, às vezes chego a desmaiar e isso passou a preocupar a minha mãe, mas eu não podia parar, eu precisava dançar, por mim e, por ele… Foi então que descobri uma forma de driblar esse meu medo pelos palcos, em um diário ganho por ele, eu passei a escrever todos os meus pensamentos, todas as minhas alegrias e frustrações, tudo mesmo, e isso passou a equilibrar os meus ânimos, uma forma que eu encontrei de desabafar.


                                    4° Capítulo



Minha mãe insiste que eu tire um tempo para descansar, mas o grande dia já estava chegando e eu tinha que ensaiar, sem dizer que eu ainda não conhecia as minhas companheiras de dança, então, nós marcamos de nos encontrar em um restaurante a algumas quadras do teatro onde acontecerá o grande evento. Chegando lá, me deparei com três meninas lindas, logo nos apresentamos e ficamos muito surpresas com um outdoor que estava de frente para o restaurante. Nele estava o anuncio do nosso show, aquilo me deixou ainda mais ansiosa e um pouco com falta de ar, então entramos no restaurante e eu fui até o banheiro para passar uma água no rosto.
Logo voltei e me sentei junto a elas, eu não estava com fome e a ansiedade só aumentava, começamos a falar sobre o evento e pelo visto, eu era a única insegura por ali, todas falavam com muita confiança, confesso que aquilo foi me acalmando um pouco, muitas idéias iam batendo e se moldando rapidamente e com isso, eu logo relaxei, deixei a bolsa e o meu diário em uma cadeira ao lado e até consegui comer um sanduiche e logo estávamos todas morrendo de tanta gargalhada. Eu tive a idéia de já que estávamos ali tão perto do teatro, poderíamos ir juntas até lá e viver um pouco do ambiente, todas concordaram na hora e então fomos todas. Saímos do restaurante e logo chegamos ao nosso destino, ao entrar, senti uma leve tontura, uma das meninas percebeu e me segurou.

-“Está tudo bem?”
-“Sim, tudo vai ficar bem” – Eu respondi.

O cheiro de madeira tomava conta do ambiente, a enorme cortina fechada ocultando o palco era linda, as cadeiras todas esculpidas a mão artesanalmente, dando um ar todo clássico ao lugar, era tudo muito lindo. Chegando em casa, a primeira coisa que eu fiz foi procurar o meu diário para escrever sobre esse dia tão especial, olhei para um lado, para o outro, dentro da bolsa e nada, comecei a entrar desespero, passei a procurar em todos os cantos, até me dar conta de que o havia perdido. O desespero só aumentou, eu precisava dele, as lagrimas começaram a escorrer sobre o meu rosto, então, fui até o teatro em meio à noite, mas o segurança não queria me deixar entrar, então implorei para que ele me ajudasse a procurar o que eu havia perdido lá dentro, ele só me deixou entrar quando viu que eu era uma das dançarinas do evento. Procuramos em cada cadeira por três vezes, mas não encontramos… eu estava desolada e dessa forma voltei pra casa.
A noite foi em branco, à insegurança voltou junto aos sonhos que sempre me atormentavam sobre os palcos. Logo amanheceu o grande dia, mas eu não queria levantar, passei boa parte do tempo na cama, meu celular não parava de tocar, números já conhecidos, mas eu não queria falar com ninguém, eu não sabia como faria para entrar no palco hoje, até que um número desconhecido me ligou, não sei por que, mas acabei atendendo, era a voz de um homem, que trazia a melhor noticia que eu poderia receber. Ele achou o meu diário, estava no restaurante, CLARO! Como eu não havia pensado nisso antes? Eu o agradeci mais do que deveria eu acho, mas eu precisava daquele diário, então, marcamos de nos encontrar próximo ao teatro no inicio da noite. Me levantei, tomei um bom banho pra relaxar e deixar que a água quente levasse todo aquele peso embora e então eu me aprontei já mais calma. Minha mãe já estava mais ansiosa do que eu, ela sabia o quanto aquilo era importante pra mim e estava disposta a fazer de tudo para fazer desse, o melhor dia. Juntas nós fomos buscar a minha roupa e minha nova sapatilha, passamos um bom tempo escolhendo até eu finalmente me decidir e ao olhar para o relógio, vi que eu já estava atrasada e que eu não iria conseguir encontrar com o rapaz do celular no horário combinado, então liguei para o produtor do evento e expliquei a situação. Logo liguei para o rapaz e lhe pedi que desse seu nome na portaria e que nos encontrássemos lá dentro. Chegando ao teatro, as minhas mãos estavam suando, minha mãe sentiu meu nervosismo e me deu um forte abraço.

-“Queria que papai estivesse aqui”.
-“Ele está querida, de alguma forma ele a está observando. Agora vai lá e dance pra ele”.

Logo vi meu produtor que me fez um sinal de positivo, uma forma de dizer que o rapaz já havia chegado, aquilo me acalmou e logo as cortinas se abriram, dando inicio ao espetáculo. Acho que eu nunca havia dançado tão solta como hoje, a imagem de meu pai não me saia da cabeça, logo o som dos violinos se calaram e assim finalizando nossos passos, e lá estava ele, sorrindo e me observando como sempre fazia em uma cadeira a minha frente como um anjo. Logo muitos vieram me abraçar e assim, acabaram tapando a minha visão, tentei manter o foco, mas ao voltar meus olhos para a cadeira, eu já não o vi mais, minha mãe então veio e me abraçou toda emocionada, assim como eu. Em seguida o rapaz apareceu e gentilmente e me entregou o diário, coitadinho, nem havia me dado conta de tudo o que ele fez só para vir até aqui e me entregá-lo. Ele me olhava de uma forma que eu na sabia explicar, talvez ele tenha gostado do que viu, então eu lhe disse:

-Você não esperava por isso, não é mesmo?  Espero que tenha gostado.
-Muito pelo contrário, você não sabe o quanto eu esperei por isso e sim, eu gostei, foi lindo, um sonho eu diria.


(Continua...)



(Felipe Milianos)

Imagem via Google/WiIt


Felipe (Don) Milianos
Enviado por Felipe (Don) Milianos em 12/03/2011
Reeditado em 13/03/2011
Código do texto: T2844190
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