Vazio

- Como você está?

- Bem. Eu estou bem...

- Tá bom. Volto outro dia pra pegar as coisas.

- Te ligo?

- Acha necessario?

- Não, né...

Vania estava indo embora e Roberto ainda tentava se acostumar. Alguns anos, algumas festas, alguns solavancos. Conheceram há uns quinze anos na faculdade de arquitetura. Nessa época os dois eram diferentes. Viviam e faziam muitos planos. Namoraram com entusiasmo durante dois anos. Não tinham dúvidas, encontram o amor. Nunca tiveram filhos. Só não aconteceu. Os amigos foram se afastando conforme suas vidas mudaram. O mercado de arquitetura já não era não charmoso e a falta de dinheiro fez as viagens escassas.

Há dois anos Roberto perdeu a mãe. E seu vigor parece ter morrido junto com ela. O relacionamento empobreceu. As novidades cessaram. A falta de chão dele tirava dela o prazer de sua companhia. Não tinha mais vontade de voltar pra casa. Coisa que nunca aconteceu, ela passou a notar outros homens. Aceitava já convite pra café e seu corpo pedia com insistência experiências com outras pessoas.

No caminho de casa, pensava em Roberto. Barba por fazer. Esmorecido e sem vontade. Sabia que quando chegasse em casa, prepararia algo para os dois comerem, tomaria banho, sentaria no sofá até a hora de dormir. Sempre depois dele. Folheava algumas revistas, tentava ler algum livro. Nada mais naquele relacionamento satisfazia. No dia seguinte o hálito de Roberto tentando lhe beijar. Dava repulsa. Pulava da cama pro banheiro e pensava com seria o dia.

Os happy hour ficaram frequentes. Lastimava quando a hora lhe tornava suspeita e tinha que voltar. Lembrava que muitas vezes quando chegava em casa Chet Baker tocava e uma taça de vinho lhe esperava nas mãos de Roberto.

Pensou que se ele fizesse isso ainda não mudaria nada. Soaria falso, como talvez fosse falso naquela época e ela não percebia. Ria nisso. Não tinha certeza. Mas era bom. Muitas vezes se amavam ali mesmo no sofá. Acordavam no domingo, a mesa colorida pelo café preparado com dedicação. Perdia muitas vezes o resto do dia, abraçados fazendo planos em sair.

Pensava como pode as coisas mudarem assim. Uma dia você gosta. É bom estar junto , abraçar, sentir o perfume do outro. Hoje essa quase indiferença, essa repulsa. Pra onde foram aqueles sentimentos. O prazer, a vontade de amar toda hora. Nada mudou e tudo mudou. Roberto já muitos meses não conseguia um trabalho. Isso lhe deixava abatido e Vãnia se esforçava pra não sentir pena. Quando esse sentimento aparecia preferia fingir algo. Ia pro parque correr. Outra hora, hora ao cinema. As festas na empresa dela eram boas, mas como levar Roberto. Um farrapo de homem, que já foi tão grande e vivo. Os olhos tristes dele secaria qualquer leveza acontecesse.

Vânia estava bem. Sentia sua carreira fluir. Os amigos da empresa paparicava. Mandava emails e com frequência chamava pra sair. Sentia vontade de chutar tudo. Foram promessas de amor eterno. E pra piorar a situacao ele parece amar tanto quanto há quinze anos. Agora ela tinha certeza, já não amava Roberto. Ela olhava pra ele e não sentia mais vontade de abraçar, falar do dia ou mesmo de saber como ele estava. Em sua cabeça o que passava era a vida que estava fora de sua casa. Fora daquele casamento, que se tranformou numa reclusão. Ele se descuidando assim. No sexo ela se afundava no colchão, pensava em mil coisas, as vezes em Afonso, seu colega de trabalho que vivia lhe chamando pra tomar vinho ou conhecer sua casa de campo em Teresopolis. Torcia pra acabar logo. E no final, a grande cena que ela nunca achava muito convincente.

- Vai ter uma viagem pela empresa no mês que vem.

- Viagem...

- Duas semanas

- Pra onde?

- São Paulo, não tenho certeza...

- Não sei se consigo lidar com isso...

- É meu trabalho. Não posso me lidar o luxo e negar. Alem do mais você está sem trabalho...

- É... estou sem trabalho

Enquanto ele se levantava pra ir ao banheiro. Observou seu corpo magro, a bunda pequena, a linha da coluna aparecendo pequenos ossos, as pernas finas. Perguntou pra si mesmo se sempre foi assim. Essa magreza. A insegurança, a falta de firmeza. Veio em sua cabeça o vigor de Afonso, lembrança que foi expulsa rapidamente. Continuou olhando pra porta do banheiro até Roberto voltar à cama. Assim que chegou na cama perguntou a ela

- Você quer agua?

- Não, Roberto.

- Boa noite.

Deitou de seu lado de barriga pra cima contemplando teto branco e vazio. Imaginava o que ele pensava. Em sua cabeça veio o fato dele já não ter mais tanta gente com ele. Os amigos os pais mortos. A culpa veio de forma assustadora. Roberto que era um homem atraente se tornou um bagagem desconfortável.

“Porque ele não se toca que acabou e vai embora” tinha vontade de maltratar, humilhar talvez, ou xingar, mas ele não lhe dava motivos, era bom e tinha um coração. Coisa que Afonso certamente não tinha. Pensava nisso e vinha-lhe uma onda que deixava todo seu corpo em chamas. Adormeceu pensando na viagem e nos abraços fortes de Afonso.

No dia seguinte conversou com Roberto. Chegou mais cedo do trabalho. Não aguentou esperar todo o dia. Pediu pra sair mais cedo. Foi da empresa até sua casa andando, uma hora de caminhada, ensaiando, imaginando a melhor forma de falar. Parou numa loja na rua Floriano Machado. Viu casais felizes, comprando, rindo. Teve inveja e se perguntou se não era sua culpa

por ter perdido a leveza. Viu que muitas vezes estiveram assim: rindo, se abraçando, fazendo compras. Coisas simples que hoje não acontece mais.

É como um retrato que deixamos a toa e vai perdendo a nitidez com o tempo.

Chegando em casa foi direto pra oficina de artes. Roberto desenhava algo bonito. Reproduzia algumas fotos antigas em nanquim. Percebeu que ela chegou e nem olhou no seu rosto. Apenas disse

- Parece facil reproduzir com nanquim.

- Você sempre conseguiu reproduzir.

- Mas não sei se consigo mais.

- Ta ficando bonito.

- Mas é só uma cópia.

- Mesmo assim é bonito.

- Você chegou mais cedo...

Ela andou pela sala . Ele ouvia o barulho do salto pisando pausado. Ela Olhava algumas gravuras na parede. Estava de costas quando a voz de roberto chegou junto com seus braços . Abraçou por trás. Apertou forte sua cintura. Aspirou profundamente seu perfume. E com ela presa em seus braços disse:

- Eu sei que você precisa ir.