Silêncio das Almas

Sabe, para mim foi muito difícil ver Caio sofrendo daquele jeito. Amigo não é coisa e nem algo que se pode encontrar de uma hora para outra. É mais fácil encontrar uma pepita no rio do que um amigo em seu próprio bairro.

O Caio é desse tipo de pessoa silenciosa que não revela seus verdadeiros pensamentos. Diria que ele é um sabonete, porque sempre escorrega entre os dedos. Naquele dia eu havia ido com ele a um lugar que prefiro não dizer. Íamos conversando no silêncio de nossos pensamentos. Sabe aquele tipo de conversa infinita, onde não se chega em nenhum lugar e nenhuma conclusão? Este foi o resultado:

Eu o via olhando desconsolado para as concessionárias de automóveis. Reparei bem que preferia motocicletas. Talvez fosse a vontade de sumir do mapa de vez, ou, quem sabe, o sonho que muitos jovens têm de sentir a adrenalina do vento batendo no rosto em alta velocidade com seu amor segurando em sua cintura, encostando os seios firmes pela idade nas costas, ouvindo aquele sonzinho de voz soprano desesperada, enquanto curte o momento. Certamente que ele me contou o que olhara e o que imaginara: via-se só numa motocicleta potente em alta-velocidade numa estrada reta, deserto de um lado e deserto do outro, a solidão consumindo seu coração...

Foi quando observei que ele abaixou a cabeça, os cotovelos perto dos joelhos, cada mão tampando um lado do rosto num gesto de proteção, porque odeia pedir ajuda para as pessoas e muito menos ficar contando o que sente. Aquilo, para mim, já revelava muito. Eu pude sentir sua dor. Caio estava sôfrego. Quantas coisas ele havia perdido em pouco tempo? Talvez a única coisa de valor financeiro que perdera fora o emprego, mas as de valor sentimental foram muitas.

Engraçado. Na véspera, Caio sorrira como criança, beijara uma moça que o amara, fora acariciado por ela... Em momentos difíceis sempre é bom ter alguém para nos apoiar e aquela moça fizera isso por ele. Mas, vendo-o como via podia sentir o que ele sentia. Então, naquele silêncio absoluto dizíamos:

- Eu não queria estar com ela. Caio me disse.

- E por que ficou? Perguntei.

- Naquele momento a minha carência falou tão forte e meu corpo se mexeu sozinho, enquanto meus pensamentos estavam na Menina (é como ele chama seu verdadeiro amor) fechei os olhos e sonhei com ela. Quando acordei vi que era outra pessoa que estava comigo. Doeu, doeu, doeu e ainda está doendo.

- Mas como você consegue fazer isso?

- Isso o quê? Ele quis saber, porque não entendeu a pergunta.

- Ficar com uma pessoa pensando em outra.

- Não fiquei com uma pessoa qualquer. Fiquei com a Menina.

Aí eu já não conseguia entender mais nada naquele momento. Contudo, depois de dias pensando no ocorrido tenho lá minhas conclusões. Acredito que a resposta dele para esta pergunta seria: era só um corpo que estava em minha frente, mas o que estava em meu coração era meu amor, então, nem senti aquele corpo diante de mim.

Quando chegou em sua casa, ele preparou comida para nós: arroz, feijão, bife, ovos com cebola e Coca-Cola. Caio tinha, depois que a Menina, uma grande pessoa, amiga minha também, seu amor, fora embora, um lugar na casa para comer. Era o quarto. Sentava-se na cama de solteiro, antes a de casal, onde muitas vezes eles dois fizeram amor na volúpia inflamada da paixão, virado de frente para a parede de cor salmom, colocava o copo no chão; com uma mão segurava o talher e com a outra o prato com comida. Os olhos embasaram instantaneamente, os lábios ficaram trêmulos e as lágrimas caíram fartamente na comida, por causa do desespero que invadia sua alma contrita. Caio pranteava por seu amor, vivenciando momentos felizes que passara junto com ele. Ali naquela alcova, que antes fora o palco das delícias, Menina não veria seu pranto e não ficaria preocupada, coisa que ele não desejava de jeito nenhum.

Notei que essas cenas tristes se repetiam em certas datas de cada mês. Sempre aqueles dois dias seriam os mais pungentes para ele: dia seis e sete. Dia seis fora o dia do rompimento com Menina; dia sete, eles começaram a construir o que fora derrubado; em um dos dois dias, Caio perdera uma porção de coisas e as lembranças vinham à mente como as ondas contínuas no mar.

Ver aquela cena de um almoço plangente e solitário me comoveu demais. Aquilo doeu em meu coração como se fosse eu o lázaro. Então, fiquei com ele, chorando no silêncio secreto da solidão de ambos, tentando imaginar como seria o jantar.

Cairo Pereira
Enviado por Cairo Pereira em 09/05/2011
Reeditado em 05/01/2013
Código do texto: T2958702
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