Layla

A Layla estava ficando cada dia mais foda.

Seus pais haviam viajado em segunda lua de mel e iriam ficar dois meses bundando pela Europa comemorando bodas de sei lá o quê enquanto o degas aqui ficava de papo pro ar na casa destes e ainda por cima trepando despudoramente com a única filhinha querida deles. Fazer o quê? A Layla era o meu novo e eterno amor. Não tão novo e nem tão eterno assim. Já fazia nove meses que eu estava engabelando a moça e ela já tinha percebido. Não modifiquei um milímetro o meu modo de vida: continuava embromando naquele pasquim indecente que eu trabalhava apenas três horas e que minhas funções se tornavam decorativas com o passar dos dias, dormia quando bem entendia, jogava nos cavalos, saia para shows de bandas de amigos, fumava maconha o tempo todo e bebia todos os dias. Claro que eu conseguia aplacar o fogaréu daquela delícia de 23 anos. Esse não era o problema. Nada que uma boa puxada na erva não resolva nesses casos apesar da nossa diferença de idade ser de vinte anos. Sem problema. É que ela estava exigindo compromisso. Tacitamente, que dúvida. Mas eu sentia que a coisa iria estourar para o meu lado a qualquer momento. Eu apenas ficava na minha e desconversava. Eu gostava da menina. Gostava dela do meu modo, bem entendido. Era maneiro ficar com ela. Beijá-la com aquela sofreguidão quase adolescente. Amá-la com aquele corpo maravilhoso e enxuto e sempre a disposição para meus fetiches mais desavergonhados. De preparar um rango para ela enquanto degustava um copo de vinho. E enquanto ela tomava um eu tomava três. De ficar atirado de madrugada assistindo filme noir ao seu lado de mãos dadas ou abraçados na cama pós-sexo. Gostava de ir ao cachorro quente tradicional da Rua XV e leva-la para me exibir para aquela velharia que só faltava ter uma sincope quando a via. Às vezes eu ficava matutando se eu não estava subestimando a inteligência da minha garota e não chegava a conclusão nenhuma. Talvez porque eu permeava esses pensamentos com tragos, tragadas e pegas. Nada de novo no front. Mas a marcação da Layla serrava a cada minuto e conseguia muito bem notar que essa animosidade estava se tornando quase palpável. Lá vamos nós... De novo. Esse papo ocorreu depois de que estava a três dias literalmente atirado pela casa da menina. Simplesmente existindo. Mente vazia. Vadiando. Vagabundeando. Se essa era a palavra que você estava verdadeiramente procurando.

-Não vai para o jornal de novo? Ela quis saber.

-Não. Nada para mim hoje também. Respondi com naturalidade.

-E vai fazer o que então? Seus olhos me diziam tudo.

-Nada. Ficar adorando você. Olha que cafajeste que eu sou...

-Não sou nenhuma deusa ou santa para você ficar me adorando. Faz três dias que você só faz beber, fumar e ficar largadão. Nem comendo direito está. Só cama e cadeira e sofá. Não lê. Não escreve. Não pinta. Não vai trabalhar.

-Você não está falando sério, está? Agora quem queria saber era eu.

-Claro que eu estou falando sério, seu boa vida! Se você acha que vai ficar aqui na casa dos meus pais fazendo nada, tá enganado, tá me escutando? Te convidei prá gente namorar não para ter um parasita se arrastando pela casa entorpecido de qualquer coisa que encontra pela frente. Porra! A gente não sai faz uns cinco dias.

-Tá de sacanagem comigo, Lay? Cê sabe que eu detesto gente!

-Aqueles teus amigos esquisitos e dopados você acha o máximo! Quase berrou na minha cara.

-Que amigos, gata? Sou um escritor recluso. Não sou de sair. Só vou ao bar perto da minha casa desopilar um pouco... que mal existe nisso?

-Carlo, por favor. Faça alguma coisa e faça outro favor, vista as calças!

Eu tinha esquecido de mencionar que estava apenas de cuecas samba canção. Merda. Fui atrás das minhas calças pretas gastas de veludo cotelê. Coloquei no corpo. Talvez eu ficasse mais apresentável e civilizado. Talvez. Ela voltou à carga:

-Puta merda ( estava aprendendo a insultar comigo ) vai decidir? Vai fazer algo de produtivo ou vai ficar vegetando e enchendo a cara mais um dia?

-Segunda opção. Respondi.

Nunca tinha vista a Layla perder a cabeça. Mas para tudo na vida existe uma primeira vez.

-Nada disso, Senhor Carlo Malta. Ela estava realmente possessa. –Vai nada. Não na minha casa. Chega! Quero um namorado. Não um elefante de quatro toneladas embriagado de vinho e fedendo a maconha. Você e a casa inteira estão fedendo a maconha!

-Então beleza, babe! Não gosto de ficar onde não sou querido. Vou fumar maconha e me entorpecer no meu apartamento onde não tem um Adolf Hitler de saias para cercear minha liberdade e meu ócio criativo...

Ela me cortou no ato:

-Ócio criativo uma pitomba, Carlo Malta. Vadiagem pura e simples. Nem prá cama você me leva, pombas! Nem come para não fazer esforço. Só fumaça e liquido prá dentro. Prá não ter que digerir muito!

-Ora, Lay. Você sabe que eu sou desse jeito e tenho que ser assim para escrever...

A Layla naquele dia não estava para brincadeira. Disse os desaforos que quis. Chorou um pouco. Disse que eu não queria nada com nada e muito menos com ela. Deixei que falasse. Enquanto isso eu arrumava minhas trouxas e já pensava no bloody mary daquele pub irlandês que tinha inaugurado há uns dois meses a caminho da minha casa. Terminei de me vestir, coloquei a mochila nas costas, encaminhei-me para a porta de saída com a Layla de voz esganiçada atrás de mim dizendo coisas que eu nem quero transcrever aqui para não constranger os meus leitores. Discussão de relação para ser mais exato. Ou melhor, “monólogo de relação” porque não sou chegado nesses detalhes. Como as mulheres adoram perder tempo em discutir o que não tem discussão. Quando girei a chave para cair fora ela ameaçou:

-Se sair por essa porta não precisa voltar.

-Acho justo. E girei nos calcanhares e ganhei as ruas. Liberdade. Rua. Amo. Demais. Bares. Lá vou eu. Nem olhei para trás. Resolvi ir caminhando para espairecer a cabeça. O laptop estava na mochila e isso que importava. Fui andando e fumando cigarros. Cheguei ao pub. Cumprimentei o dono e sua esposa bonita. Pedi bloody mary com cerveja. Fui até as mesas externas e fiquei bebericando meu trago. Estava uma delícia, como sempre. Elogiei o atendimento. A Jane – esposa e coproprietária do lugar – me olhou e perguntou se tinha acontecido alguma coisa e porque eu estava sumido.

-Ah, briguei com a garota que eu estava saindo. Me acha um parasita, veja se pode!

-Carlo, você não é nenhum monge e sabe disso. Ela respondeu.

-Legal. Manda descer mais dois. Igual, legal? Vou pagar no cartão.

Ela foi e voltou com as bebidas. Fiquei por ali. Deixei o dia se transformar em noite. O povo saia de seus empregos falidos e medíocres com uma sede danada. Alguns conhecidos me cumprimentaram e começaram a conversar. Não sou expert na arte do bate papo, mas naquela noite eu estava falante devido a todo álcool que eu coloquei no meu corpo. Resolvi que queria me divertir e encher a caveira. Afinal, eu tinha levado um chute na bunda. Não tecnicamente, claro. Porém dentro da minha canalhice resolvi fazer que sim para mim mesmo. Desceram mais bebidas, rolou mais conversa e no fim da noite eu estava novamente trançando as pernas, cantando Queen Of The Stone Age em latim, e cumprimentando os viras latas de rua. Consegui voltar para meu apartamento de fundos de solteiro de um quarto. As persianas estavam abaixadas e liguei a TV para ter um pouco de luz. Enrolei um baseado. Ia rolar um filme que eu já tinha visto e iria ver de novo. Afinal, eu gastava uma grana suada em conexão de internet e cabo e deveria usar isso. Acionei meu isqueiro e queimei o baseado. Dei uma bela tragada. Duas. O filme começou. Três. Tá ficando gostoso. Quatro. Passaram os créditos iniciais. Cinco. Bodei. O filme começou a dançar na minha frente. As legendas se tornaram hieróglifos ou escrita fenícia. Dormi e nem desliguei a tevê. Em minutos era o Leão do Passeio Público roncando. Até amanhã.

Acordei na manhã seguinte com o telefone berrando na minha orelha. Veja se isso é jeito de começar o dia. Era do jornal. Que dúvida. O redator chefe queria uma matéria de costumes sobre a lei que garantia o direito dos homossexuais e queria publicar no dia seguinte. Eu poderia escrever e mandar por e-mail? Sem problemas, foi minha resposta. Nada que me tomasse mais que uma hora na frente do computador. Ele me avisou que o pagamento iria sair em três dias. Ótimo. Já estava precisando do dinheiro, pois as contas já tinham chegado e algumas ainda iriam chegar. Fatal. Como diz o Dalton Trevisan. Tomei um banho, abri a primeira cerveja do dia e acendi o primeiro cigarro. Fiz umas pesquisas rápidas sobre o assunto e escrevi uma matéria que ao meu ver ficou sensacional. Enviei para a redação. Vesti-me e fiquei pensando o que eu iria fazer o resto dia. Resolvi checar minha caixa postal. Tinha um porrilhão de piadinhas insossas e convites para festas, vernissages e inaugurações. Deletei sem abrir. Tecnologia é uma beleza. Só que eu estava sentindo falta de algo. Não sabia direito o quê era mas meu peito estava vazio. Coloquei a culpa na noitada anterior e fui tratar de vida. Me peguei escrevendo poemas macambúzios de amor perdido e de gostar não correspondido. Ainda me perguntava o porquê dessa pieguice toda. Seria a cena da Layla? Claro que não. Não era mortalmente sério. Pelo menos não para mim. Era o que eu achava. Fiquei mais algumas horas na internet e só bebi mais uma cerveja. Seis horas da tarde o sol começou a se pôr e resolvi voltar para o bar. Outro bar. Aquele que tem um garçom com a cara do John Travolta em “Pulp Fiction”. Entrei e já comecei a beber pesado. Um camarada meu estava lá (nome: Hugo) e me intimou de um baseado. Apresentei. Um cara prevenido vale por dois. Ficamos conversando e ele estava passando pelas agruras de uma separação recente. E a iniciativa tinha sido toda dele. Fiquei apenas ouvindo e meneando a cabeça em tom forçosamente solidário. Pedi vodca e cerveja, para variar um pouco. As doses vinham generosas e eu teria que pagar em dinheiro porque o dono do bar não aceitava cartão. Em pleno século XXI. Coisas da vida? Vai sonhando. Entornei até depois da meia noite e cheguei a minha casa daquele jeito. Outra vez. E isso se prolongou por três ou quatro dias. Ligações do jornal, textos moleza para redigir, cervejas em casa, e uma sensação de nostalgia que não abandona meu peito. Pensava na Layla. Incrível. Eu finalmente admitia que pensasse na Layla. E os bons momentos vinham a minha mente como flash backs. Que loucura! Tive que perde-la para sacar que estava irremediavelmente apaixonado? Que gostava dela realmente? Que sentia sua falta? Que ela me dava uma sensação de segurança? Que eu gostava de conversar com ela quando íamos aos lançamentos de livros e depois comer uma pizza de mozzarella para fazer um amor gostoso? Resolvi ser frio e centrado e varrer esses pensamentos da minha mente. Não levavam a lugar nenhum. Ou eu estava novamente bancando o durão para ninguém? Carlo Malta, escritor maldito, relegado a trabalhar em um jornalão de quinta categoria porque ninguém compreendia sua genialidade?

Nunca tinha sofrido por mulher antes e não era agora com mais de quarenta que eu iria fazer essa burrada. Nem a pau. Voltei para o bar e dessa vez me embriaguei feio com junto com uns garotos que tocavam numa banda de hardcore old school da pesada. O contrabaixista teve que abrir o portão e a porta do meu apartamento e o vocalista me amparava pelo braço esquerdo. Fiz questão de apresentar um baseado para eles. Me enrolaram que fumaram e esperaram até eu dormir. Achei a porta da frente do condomínio não trancada com a chave, apenas fechada, na manhã seguinte. Fazia desde os tempos dos vinte anos que eu não perdia a mão desse jeito. Deprimente. Merda. O que tinha acontecido comigo? Layla, saia da minha mente! Eu implorava agora. Tentei continuar a rotina e até decidi voltar a ir ao jornal. Onze horas não me restava nada mais para fazer. Silêncio no telefone e no meu celular. Noites e noites loucas, trôpegas, etílicas. Sexta feira chegou e passou. Sábado pela manhã eu tinha desistido da luta. Foda-se o orgulho. Foda-se escrever. Eu gostava da Layla. Consegui admitir. Iria ligar para ela só para que ele me pisasse e me chamasse de escroto. Eu merecia. Fiquei meses tratando aquela princesinha como lixo ou pior, como depósito de porra! Eu sei que sou sacana. Mas eu queria me redimir. Mesmo que tivesse sacado o cafajeste estupido que eu era. Só queria ter liberdade para ligar no seu aniversário e desejar-lhe boas festas. Eu necessitava de sua amizade. Se ela quisesse se afastar definitivamente e não manter nenhum contato também estava de boa. Eu compreenderia. Não é fácil se envolver com uma isca velha como eu. Agora eu compreendia tudo. Não passava de um escritorzinho underground que tinha vendido meia dúzia de livros de contos para um bando de degenerados sociais. Não deveria ter entrado na vida dela e mexido com os sentimentos de tão bela e generosa mulher. Eu sou um voyeur só que não tenho o direito de fazer esse tipo de merda com uma menina que sempre mereceu o melhor. Passei a mão no telefone e disquei. Acendi outro cigarro. Tocou quatro vezes. Ela atendeu.

-É o Carlo.

Ouvi sua respiração e um suspiro. Pareceu um soluço, sei lá.

-É – ela respondeu – eu sei.

-Desculpe pela cena. Pode me odiar agora.

-Não odeio. Não consigo. Você é do jeito que é e vai ter que me aceitar do jeito que eu sou.

-Obrigado. É bom ouvir isso. Respondi.

-O que você vai fazer hoje? Ela quis saber.

-Nada. Beber. Acho.

-Li teu texto no jornal. Tá escrevendo cada vez melhor! Muito legal sua abordagem imparcial daquele assunto tão espinhoso. Ah, descolei um escritório para trabalhar, começo em duas semanas. Liguei para os meus pais e eles adoraram a notícia. Vão ficar mais um tempo na gringa. O que você vai fazer hoje? Perguntou de novo.

-Beber eu acho. Respondi de novo.

-Vem beber aqui. Trás o que você quiser. Hoje eu te acompanho. Tô precisando tomar um porre para comemorar o meu emprego. Pode ficar vadiando aqui uns dias. Só não passe do limite.

-Tem certeza? Disse ressabiado.

-Não. Mas venha de qualquer jeito.

-Obrigado. Já já eu passo por aí. Só me tomar uma ducha, me vestir, comprar algo e tô aí.

-Legal. Só não beba muito no caminho. Tem um baseado? Quero experimentar.

-Você me ama? Perguntei feito um adolescente abobalhado.

-Gosto de você do mesmo jeito que você gosta de mim.

-Legal. Tô chegando. E desligamos.

Fiquei me perguntando depois o que leva as pessoas a se aproximarem. Nenhuma resposta coerente satisfez meu cérebro liquefeito. Masturbação mental novamente. Nada poderia ser feito. Pela primeira vez sentir meu peito doer e depois ser envolvido por um bálsamo. Amor é para guitarristas. Mas gostar é muito bom. A vida não é ruim. É só ir levando. Meias limpas e uma grana. O resto é perfumaria. Layla, obrigado por tudo. Não somos perfeitos. Nem imperfeitos. Apenas humanos. Será?

Geraldo Topera
Enviado por Geraldo Topera em 24/05/2011
Código do texto: T2990678
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