A Cura do Tempo

Quando a chuva principiou a cair senti que iria ter problemas. O céu pesado de nuvens negras e a trovoada intensa era mau prenúncio no final daquele dia de Outono já muito frio. A casa, a meio da encosta da serra, tinha como garantia de firmeza o rochedo em que os meus avós a implantaram e algumas décadas de resistência. Em todo o caso decidi soltar os animais do redil e preparar uma mochila com cobertores e alguns víveres. Quando o ruído das águas ultrapassou em muito o usual, corri para a boca da mina que se avistava, a cerca de quinhentos metros do caminho, alguns instantes antes de ver a casa e a pedra rolarem pela encosta. Uma cortina densa de água continuou por muito tempo a impedir a visão do vale onde o Rio já engolia árvores, terras, casas e gente. O dia acabou abruptamente e uma noite profunda envolveu-me e aos ruídos da borrasca. Por instinto de mera sobrevivência não me lembrei de nada nem de ninguém. O cão, as cabras, o cavalo e as aves de bico seriam o problema seguinte mas, em todo o caso, à boca da mina gritei o nome do cão e assobiei até perder o fôlego.

Na gruta principal há um espaço de controlo de carregamentos, construído em alvenaria e revestido a madeira, que tinha como função abrigar o pessoal que, diariamente, ali operava. Encerrada há doze anos, a mina foi-se gradualmente degradando mas a Central, como era então designada, ainda era habitável em parte por ser difícil o acesso e parte por estar obstruída a entrada principal. Antigo mineiro, eu sabia o caminho que me permitiu entrar pelas dependências posteriores e pude abrigar-me num espaço ainda acolhedor. Um fogão de lenha com caldeira, uma mesa, várias cadeiras e uma estante com papelada preenchiam a área principal. Ao fundo os lavabos, latrinas turcas e uma fileira de chuveiros constituíam as zonas que ladeavam os quatro beliches, dois deles ainda com colchão. Sem energia eléctrica fiz funcionar o fogão usando papéis do escritório e mobiliário empilhado junto à entrada. O fogo permitiu ver toda a amplidão das instalações e revelou muitas dezenas de lanternas de petróleo, pás, picaretas, archotes e vários recipientes para a recolha das águas pluviais que se usavam nas limpezas, banhos e lavagem do minério a fim de o separar por categorias. Lá na aldeia o caos instalara-se e os sobreviventes, se os houvesse, fugiriam pelos vários caminhos da serra procurando os lugares mais elevados. Seria natural que aparecessem por ali. Acendi as poucas lanternas que tinham petróleo e coloquei-as na boca da mina para os orientar mas, vendo passar as horas sem que ninguém aparecesse, acreditei que não houvesse sobreviventes à cheia que se seguiu à borrasca e levou tudo com inusitada fúria. Viver onde eu vivia, isolado das pessoas da aldeia, era um sacrifício a que me fui afeiçoando. Sempre que podia, após a contagem das rezes e o seu tratamento, descia ao povoado e bebia, na tasca do Merendeiro, o suficiente para regressar aos tombos com mil sonhos sem lógica para analisar mais tarde. A solidão pode ser uma bênção ou um castigo e a minha, tinha as duas vertentes que alternavam, entre si, segundo a calma ou a ebulição do meu sangue já maduro. Não sei quem primeiro começou a desejar que o chamado progresso implodisse e a achar que deveríamos regressar às origens largando a cidade, o emprego e a vida confortável que tínhamos para ir no projeto que canalizava jovens e menos jovens para as aldeias abandonadas. Aquela, sede dos antigos mineiros, agradou-nos pela proximidade do rio e da serra. Já não importa quem decidiu por nós dois. Sei que te segui, dócil como de costume, e que os primeiros dias foram dramáticos. Faltava-nos tudo: comida, calor e amigos. Televisão. Um rádio a pilhas trazia-nos notícias da guerra, da crise, do mundo que passou a ser-nos estranho como se pertencêssemos a outra galáxia. Demasiado frágil para aquela vida, adoeceste naquele mesmo ano e abandonaste-me pouco depois. Sem o velho emprego, já a beirar os cinquenta e acostumado ao novo ritmo de trabalho e de vida, fiquei. Se aparecia alguém convidava para o jantar e, na regra, bebia muito. Passei a abusar do álcool desde que desapareceste da minha vida sem, no entanto, deixar que isso perturbasse o trabalho e as responsabilidades diárias. Nessas alturas libertava os meus fantasmas, contava as angústias, os anseios, as vontades e, a estranhos, revelava mesmo coisas de foro íntimo que talvez justificassem aquele desejo de isolamento. Tudo na nossa casa era precário. Móveis, alfaias, bragal. O fogão era a lenha e a luz de antigos candeeiros, alguns só com uma torcida estiolada a gerar o fumo que escurecera as velhas paredes brancas. Tinha dois quartos minúsculos e uma área de refeições que abarcava a cozinha e a lareira. Havia a casa de banho com chuveiro e latrina, já construída por mim, em pedra rolada e cascalho, sobre uma fossa excessiva para as necessidades. A água tirava-se do tanque que a recolhia dos córregos da serra. Foi um tempo em que os silêncios moldavam os dias e as palavras, sempre ponderadas, enfeitavam os momentos mais solenes. Tecias camisolas de lã, fazias doce com as frutas selvagens e quando sobrava leite, queijo. Das embalagens cuidava eu e dos rótulos também. O resto do meu tempo era para cuidar das cabras, fazer as permutas e as compras na aldeia e voltar, melancólico, a este lugar que foi dos meus ancestrais.

Minha Mãe contava que os Avós foram felizes naquela casa ao tempo sem grandes condições mas que ela, na adolescência, sofria com o rigor do lugar, o silêncio, e a falta de gente. Sonhava com um príncipe encantado mas acabara a aguardar por apenas um homem disponível para a acompanhar o resto da vida. Teve sorte. O meu Pai não era nem príncipe nem nada de parecido mas, segundo ela, era belo como um Apolo. O porte atlético, o olhar doce, o riso aberto a emoldurar uma fiada de dentes perfeitos e a vontade de ficar com ela tudo resolveram em menos de nada. Casaram muito depois quando a sua barriga já anunciava nova gente para muito breve. Sem dramas, sem contrariedades de maior, todos se congratularam com o novo elemento da família e saudaram o rebento, primeiro entre vários que passariam a percorrer os caminhos da encosta até desaparecerem para cumprir os respectivos destinos. Até eu quis fugir, procurar novas aragens e outras gentes. Saí para estudar e fiquei longe, enquadrado, adaptado a outra forma de estar e de ver o mundo. Casei quando achaste por bem. Segui-te, fiel como um cão, amorfo, passivo. Muitas vezes te rebelavas com o que eu fazia para permanecer em paz e numa delas a tua hostilidade abalou-me profundamente. Fechei-me e ignorei-te durante muitos dias. Percebi então que duas pessoas, mesmo muito apaixonadas, podem separar-se de um para outro instante. Fiquei a saber que ninguém pertence a ninguém e que, mesmo sem vontade de sairmos da esfera um do outro, pertencemos a corpos distintos e somos dois mundos vincadamente diferentes. Acho que a solidão me acompanha desde então. Nunca mais pudeste entrar no meu reino de sonhos e, contigo, só pude partilhar o menos bonito da minha experiência. Penso que nem deste pela diferença e só quando, de novo sem gente para dividir a tua atenção pudeste, enfim, perceber que ficavas fora da minha raia, desiste de mim e foste embora. Levavas contigo o resto da minha alegria e quase toda a beleza que sabia. Através das lágrimas aprendi, então, a encontrar outros motivos para viver mas a beleza nunca mais a achei em corpo algum dos vários que passaram pelos meus braços. Trabalhar, fazer as refeições, beber e ficar a ver o lume enquanto escutava sobre guerras, pestes e fomes na telefonia passou a ser a minha maneira de estar. Até ontem. Quando puseram o povo em alerta máximo já a chuva diluviana acontecia, já a barragem ameaçava ruptura, já se afogavam as pessoas do vale e da aldeia. O gado, os pomares, as árvores, tudo desaparecia naquela espessa cor cinzenta, e um mar de lama e destroços se apertava na garganta da serra, sob um rugido tremendo que chegava à nossa casa. A água vinha do cimo da encosta e lavrava valas enormes. A pedra e a casa foram rapidamente deslocadas como se não tivessem peso. Aqui sinto-me seguro sobretudo porque, tão depressa como chegou, assim amainou o mau tempo e, agora, é a noite límpida que começa a revelar outros mistérios.

O cão, finalmente, chegou. Senti-o a uivar no outro lado da parede. Com ele vinham duas cabras que se aproximaram logo que as chamei. Talvez as outras estivessem vivas também, pensei. Amanhã vou procurá-las. Por hoje, apagadas as lanternas para poupar combustível, deito-me com o cão no beliche e deixo que as cabras fiquem junto do fogão ainda aceso.

Passou uma semana depois da catástrofe e só então começavam a chegar as equipas de socorro. Traziam comida, medicamentos, cobertores e uma enorme vontade de ajudar mas o que encontraram era desolador. Nem gente, nem gado. Um cheiro a podre enchia o ar e tomava tudo quilómetros ao redor. Decidiram dinamitar a garganta entupida para ser mais fácil recuperar depois os mortos e evitar novas cheias a montante do obstáculo. A ideia era transferir para a aldeia vizinha quem estivesse vivo. As casas ainda devolutas estavam a ser preparadas para o efeito e os padrões da intervenção eram semelhantes aos que ditavam a ordem na aldeia desaparecida. Acabei por aceder sair da Central da Mina. Estava farto de solilóquios, de maus pensamentos, de desânimo. Havia conseguido reunir quase todo o meu rebanho, recuperei o cavalo e algumas galinhas justamente na cratera que a pedra e a casa deixaram no meu antigo terreno. Deram-me umas ruínas de xisto com a azenha a funcionar, sobre um desfiladeiro de fragas. Um canto seco foi quanto achei que bastava para armar uma cama. A lareira que havia era o lugar mais bonito da construção. Lembrei-me de ti. Tu amavas coisas assim, rústicas, a raiar o primitivo. O pior era os restantes animais. Com os novos vizinhos pude recuperar o estábulo e a capoeira, usando materiais cedidos pela Casa do Povo. Pensei, depois, que não seria vida ficar a lutar contra a invernia e decidi recuperar a antiga casa, calafetando os buracos entre as pedras, forrando a ripas de pinho o tecto, reparando ou fazendo novas janelas, substituindo portas. Foi obra que desenvolvi sozinho e aos poucos e que, consequentemente, levou vários meses. No pensamento só te tinha a ti. Fiz uma sala para a tua costura aproveitando o alçado mais luminoso, ampliei a varanda sob o telheiro imaginando-te, no verão, a por uma mesa e cadeiras ali e consegui que o quarto, já de si muito amplo, ficasse lindo com o reboco pintado de branco e a janela de vidro duplo. Repeti, adaptando a construção ao novo local, o que já havia feito na anterior casa a respeito dos sanitários. Mentalmente comecei a sentir que, um dia, haverias de sentir saudades de mim e que voltarias. Nunca pensei, no entanto, que isso fosse possível.

Soube, pelos homens da Brigada de Salvação, que uma mulher ainda nova me procurara entre os cadáveres recuperados e que se abrira um processo de localização ainda pendente por ser apenas agora tempo de acertos na burocracia da entrega das casas, da assinatura dos novos contratos. A princípio não imaginei que fosses tu mas depois, pensando melhor, quem mais poderia ter interesse em saber que fim havia levado um tipo como eu, sem família e sem filhos, sem dinheiro? Pelo sim pelo não procurei recuperar o teu tear, fiz um esforço de memória e comprei as agulhas do croché, tesouras, agulhas para fazer Arraiolos, uma velha máquina de costura, panelas, tachos, alguidares e muitas outras pequenas coisas a que te associava nas imagens, cada vez mais fortes e saudosas que me iam surgindo de ti. Era um modo de me arrepender dos antigos desacertos, da velha intolerância, das atitudes que nos foram separando. Naquele dia chamaste-me estéril, responsável pelo ermo em que se tornara a tua vida sem filhos ou sem esperança de os teres. A culpa só poderia ser minha porque, na tua juventude, estiveras grávida, gritaras-me. E ofendeste-me como nunca, antes, alguém o fizera. Mas o tempo cura tudo, comigo fora assim. Talvez tivesses razão para a agressão verbal, para o menosprezo. Amar não deve ser a concordância acrítica com tudo, o anular da nossa personalidade, a tentativa desesperada de apagar divergências como eu fizera pensando que seria melhor para te conservar. Tinha tanto medo de perder-te que fiz tudo ao contrário do que seria desejável. Respondi aos teus insultos e aos teus apelos desesperados enquistando-me, recusando o diálogo e deixei que o afecto se degradasse cada vez mais. Só a tua ausência me mostrou o quanto eu estava errado mas era tarde para saber onde te procurar e como agir para te recuperar. E passaram anos. A espera ameaçava eternizar-se mas o meu coração não desistia de ti, até mesmo quando me misturava com quem só vagamente me poderia lembrar os velhos bons tempos. No dia seguinte, sem álcool e à luz de um novo dia, acabava por exigir que fossem embora por ser impossível substituir-te, definitivamente, na minha vida. A verdade é que te esperava. Um dia, pensava, haverias de subir as escadas, aquelas escadas e tomar posse das tuas coisas, posse do teu homem, posse da tua lã já cardada e posse da tua vida. Dir-me-às que os anos longe não contam e escutar-me-às a dizer o mesmo antes de fazer do hiato um capítulo da nossa história que ambos prometeremos esquecer. Não hei-de querer saber por onde andaste e não vou contar os episódios sensuais em que, desesperadamente, te procurei. Será assim?

Carta para vossemecê, Adelino! Acho que é do Projecto das Aldeias. Alguém anda à sua procura, segundo me contaram, e querem saber se aceita receber aqui a pessoa. Tenho de levar hoje a resposta. Faça o favor de ler a carta e, depois, assinar aqui, se estiver de acordo. E saltou-me o coração! Serias tu, Amélia? Ah, se fosses tu! E rasguei a carta, tremiam-me os dedos, lacrimejavam-me os olhos, abanava a minha voz que, sumida de sons, me falhava. Pedi que fosse o carteiro a ler só para ouvir de outra boca a confirmação do teu nome. Era mesmo o teu nome completo, Amélia Pais Afonso, com o meu sobrenome, sinal de uma aceitação de mim que já duvidava que fosse possível. Querias voltar! Voltarias logo que fosse possível. As condições seriam discutidas na presença do Regedor e era só isso que eu não conseguia perceber. Mas, adiante, saberia tudo logo que viesses e isso teria lugar em breve, garantiam na carta. Quando, finalmente, tal como eu sonhara, subiste as escadas da nova casa, não vinhas só. Trazias um menino de cerca de seis anos pela mão. Explicaste-me, então, que a criança te fora confiada por terem morrido os pais na enxurrada e querias ficar com ela. Se a aceitasse ficarias comigo, se não a quisesse iriam ambos embora. Assim, sem um abraço, sem um beijo, em palavras secas, embora as lágrimas corressem pela tua face magra como se quisesses amenizar a dureza da negociação. Claro que quero ficar com os dois, respondi. Quero tudo o que te devolva à minha vida, meu amor.

FIM

Edgardo Xavier
Enviado por Edgardo Xavier em 18/07/2011
Código do texto: T3102646
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