Sra. Xavier - Terceira Carta – Maio de 1945

Ana, minha doce amiga, sei que é estranho este repentino surgimento de Júlio. Quer saber, fiquei emocionada com a história dele que nem preocupei com o detalhe. Mas pensa melhor Ana, você é muito cismada, deve ser o tempo na escola que a deixou desconfiada de todo mundo. Júlio não demonstra que finge e ele vem se esforçando no escritório é um rapaz batalhador e meu marido está pensando em passar casos pequenos para Júlio trabalhar. Nesse intrometi, disse que Júlio precisava ganhar mais experiência. George pensou e percebeu que eu estava certa.

Não tenho tanto assunto para contar nesta carta Ana. Há assuntos que dizem respeito aos meus vizinhos e outro que permaneceu na minha cabeça alguns dias. Tomara que seja tolice da minha parte.

Foi no primeiro domingo desse mês, no entanto três semanas antes de escrever a carta a você. Estou escrevendo e enviando as cartas no período de dois meses, pois considero um bom espaço, porque certos fatos podem surgir bem tarde. Sei que aí onde você mora as coisas demoram aparecer e quando aparecem são tão ligeiros que não a tempo de contar. Aqui em São José dos Campos tudo acontece de uma hora pra outra mesmo que sejam banais e sem importância.

Tem um vizinho que vem cuidando e resolvendo os assaltos no bairro houve até assassinato. George considera a ação do vizinho violenta e fora dos padrões normais das leis. O fato é que os assaltos diminuíram só espero que não termine em tragédia.

Como eu disse, aconteceu no domingo.

George convidou Júlio para almoçar neste dia ele havia perguntado para Júlio qual seria o prato predileto dele e Júlio respondeu que era lasanha com molho de tomate e carne moída com muito queijo derretido.

A preparação do prato sobrou para essa amiga que lhe escreve. Fiquei nervosa. Onde encontraria meios de preparar um prato complicado? Deve estar dizendo: “Viu sua boba, por ter faltado nas aulas de culinária?” Faltei algumas e nelas incluíram a aula de lasanha. Por outro lado qualquer fracasso, preparo bons pratos, no caso da lasanha, fui pega e para complicar recebi a noticia sexta-feira dois dias antes do almoço marcado e era noite.

Corri o sábado à procura de alguém que pudesse ensinar a montar a lasanha. Minha salvação caiu nas graças da Dona Joaquina minha vizinha. Quando comentei da situação, ela riu, achando engraçado.

“Coitada... A mocinha não aprendeu preparar lasanha?”

Disse soltando risinho.

Na hora pensei que estivesse se divertindo com o meu problema e fiquei de sangue alto. Ela pegou meu braço e me puxou para entrar na casa dela, me levou para cozinha, fez sentar na cadeira e saiu.

Voltou trazendo um livro de capa dura de receitas. Abriu na parte da lasanha e nas paginas seguintes demonstravam vários tipos de preparo para o prato. Dona Joaquina soltava seus risinhos, compreendi que não eram zombarias, no entanto perguntei:

“A mocinha não tem cara que cozinha nasceu para não cozinhar.” Disse ela. “Na escola onde estudei e morei fui ensinada a cozinhar.” Disse a ela. “Que escola? Em São José?” “Em São Paulo. Estudava na escola católica.” “Você é da cidade grande e não aprendeu a montar lasanha?” “Eu não estava no dia que passaram essa lição.” Respondi cheia de vergonha.

Aí disse que sabia fazer alguns pratos e Dona Joaquina dizia e ria que eu não tinha cara de ficar na cozinha. No fim ela permitiu copiar a receita, pois não liberava levar o livro que pertenceu de uma avó portuguesa. Que contentamento senti naquele momento... Rapidamente transcrevi a receita e agradeci Dona Joaquina. Tive tempo de passar no armazém e comprar os ingredientes e comentar com George que eu não tinha cara de ficar na cozinha. Ele soltou uma gostosa gargalhada dizendo que eu estava certa.

Júlio chegou as dez e trinta minutos. Trouxe uma garrafa de vinho e ele e George conversaram sobre a ocupação dos nazistas na França, falaram de um certo Jean Paul Sartre, disseram que é filósofo. Sabe que apreciava os contos de Voltaire na escola não tinha gosto para filosofia, mas gostava de Voltaire.

O almoço ficou pronto as onze e quinze minutos. Montei a lasanha conforme as indicações que marquei no livro, passo a passo. Ainda preparei um frango cozido.

Júlio ficou encantado com a lasanha elogiou-me, disse que foi a melhor lasanha que degustou. Falei que não precisava exagerar, retrucou, jamais provou lasanha como a minha. George falou que eu servia para escrever poemas, mas admitiu que o prato estava saborosa.

Terminado o almoço, Júlio abriu a garrafa de vinho e insistiu que eu declamasse meus poemas, George tomou as rédeas de Júlio e tive que recitar poemas que tinha escrito no mês passado.

Júlio afirmou que era agradável ouvir minha voz George concordava, comentava que eu possuía voz de veludo. Passando por todos os elogios mudamos a conversa para o teatro.

“Aqui em São José não existe o verdadeiro teatro.” Disse George.

“Não se aprende teatro apenas mostrando que conhece um tipo de autor e que faz para demonstrar que possui conhecimento visando à atenção para si mesmo.” “Visando em que sentido?” Perguntou Júlio. “Fortalecer o egocentrismo, de centralizar a atenção num único ser para receber exaltação. É puro egocentrismo.” “Mas, até onde sei o teatro em São José vem crescendo ultimamente.” Disse Júlio. “Aqui não existem atores teatrais.” Confirmou George.” E por que não há atores em São José? Perguntei. “Você assistiu as representações deles tão mornas, sem expressão e pensam que são excelentes, mas não passam de atores mesquinhos e fraquinhos encenando peças fracas.” “O problema é que se esforçam. Lembro-me deles representando uma peça posso confirmar que não entendo de teatro, percebi que atuaram com tamanha dedicação.” Comentei. “Eles representam sem vida, acham-se conhecedores de tudo, mas não conhecem nada.” “Ah, George... Parece que detesta essas pessoas.” Falei. “Apenas não aceito as atitudes deles.” “Percebo que os conhece. Falou Júlio. Para falar dessa maneira tem conhecimento e intimidade.”

“Participei e convivi com essa gente, pois fazia aula de violino no mesmo espaço que eles. Conheci alguns deles, assisti os ensaios, um querendo demonstrar que conhecia mais que o outro.” “George. Comecei a falar. Nunca me disse que fez aula de violino e que conhecia pessoas que faziam teatro nem sabia do seu interesse por ele.” “Querida, jamais tive interesse. Quer dizer, não totalmente. Gosto de assistir e fiquei nas aulas de violino pouco tempo não tinha vocação para tocar aquilo.” “George, meu querido, desistiu da musica, por quê?” “O Direito falou mais alto, está nas veias.” “Meu pai o ajudou.” “Seu pai foi meu mentor, ensinou-me e deu conselhos. Sem ele não chegaria à metade que cheguei. E ele me deu você.”

George beijou minha mão.

“Hoje é dia de revelações.” Disse Júlio. “Tenho uma para declarar.” “Leticia e eu estamos ansiosos para ouvir.” Disse George olhando-me.

É neste ponto Ana que queria chegar. Neste momento que ficou martelando na minha cabeça. Júlio iria realizar uma revelação, e eu e George aguardamos e Júlio falou olhando em direção a mim, penetrando seus olhos nos meus: “Senhora, estou apaixonado por sua beleza. Considero a mulher mais bela do mundo.”

Declarou sem nenhum resíduo de vergonha, de saber que eu era casada e falou na frente do meu marido. E nessa situação como fiquei Ana? Completamente sem direção, não enxergava nada, fiquei sei jeito. George soltou uma gargalhada e concordou com Júlio. Que coragem teve o rapaz e para o meu alivio George considerou como brincadeira.

Fico por aqui amiga na esperança de que tudo esteja resolvido até lá.

(Leticia Xavier)

Rodrigo Arcadia
Enviado por Rodrigo Arcadia em 06/09/2011
Código do texto: T3204209
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