Dias [Per]Feitos (Romance Fragmentado: Parte 1 - Capítulo 4)

Capítulo IV

Karina, uma balzaquiana daquelas que dariam gosto a muita feminista, tendo vivido com uma dignidade, orgulho em ser mulher, enfrentando de cabeça erguida os improprérios do cotidiano. Aprendeu a sempre ser combativa, sabia que curvar-se apenas a tornaria mais uma coadjuvante em meio a uma sociedade que vilipendia o que denominou de “sexo frágil”. A questão de gênero é realmente impressionante, entre um campo de falos, parecia uma terrível ceifadora a ponto de ameaçar a frágil masculinidade por tanto tempo cultivada, cheia de mimos e regras descabidas para assegurar a falsa legitimidade do poder másculo. Karina era daquelas mulheres que faz resignar-se com um simples olhar, desconcerta ao encarar a fronte alheia por desvendar o que as impressões tentam escamotear. Sua educação foi conservadora, no sentido mais repressivo do termo, seu pai era homem taciturno, sua mãe, mulher que como diziam, não tinha “papas na língua”. O legado materno que lhe foi transmitido era de ser prendada, ou seja, realizar as tarefas domésticas com perícia, atender os desejos do futuro marido, dedicar-se aos possíveis filhos. Mas Karina desejava muito mais que isso, adorava uma boa leitura, após ser alfabetizada, começou a se interessar pelos romances, o que deixava sua mãe transtornada, por ver sua filha dada a práticas tão pouco convenientes a uma mulher doméstica. A moça também era extremamente vaidosa, desde a mais tenra idade que pode recordar, suas formas impressionavam, apesar de ter procedência social humilde, sua postura, misturada a estética, serviriam como inspiração a modelos de damas da aristocracia. Era invejada por muitas outras mulheres, que apesar do esforço, não possuíam dotes tão carismáticos, contentando-se em difamar aquela adversária que jamais poderiam liquidar por força de seus próprios atributos atrativos. A sedução de Karina era nata, dizem que desde bebê conquistara os médicos com aquele sorriso que parece vir da alma, além do contraste provocado entre aquela tez lívida e as bochechas rosadas, como se tivessem sido maquiadas de propósito e com exagero para destacar a face ruborizada.

Aprendeu desde cedo as prendas domésticas, mas nunca se dedicou a ponto de aperfeiçoar, procurava realizar apenas para evitar repreensões, desejando conquistas além da privacidade familiar. Bordado nunca quis aprender, evitou qualquer insinuação desse tipo, criou uma imagem de senhorinhas beatas realizando tal ato, nunca se viu nessa posição. A religião também veio de forma imposta, não lhe agradava a rotina de cultos, ainda assim frequentava, sua fé era algo que dispensava de local considerado sagrado para manifestar-se, desenvolveu um estilo próprio de render orações ao Deus que adorava. Lia a Bíblia quando sentia vontade em fazer, comprou uma edição de bolso, podendo fazer a leitura longe de olhares curiosos, era algo muito íntimo e não necessitava de público para suas súplicas. Teve uma infância feliz, apesar de recatada, mas procurou sempre aventurar-se no desconhecido, explorava brincadeiras que diziam ser de privilégio masculino, estava entre adultos em conversas consideradas impróprias para crianças. Foi aquele tipo de criança que sempre tem uma resposta pronta, “na ponta da língua” como diziam, sempre uma boa sacada contra quem desejasse testar seu raciocínio rápido. A adolescência foi prazerosa, começou a descobrir seus dotes sensuais, foi namoradeira, provava os beijos dos garotos com uma malícia de quem deseja acumular perícia. Aos 15 anos de idade conheceu o prazer do sexo, embora sua primeira vez tenha sido incômoda, afinal de contas, os garotos tendem a aprender muitas coisas, menos como proceder com uma mulher, introduzem seus pênis com a mesma gana que o desejo libidinoso os impele às primeiras masturbações. Acabam sendo agressivos por uma compulsão de aplacar o desejo reprimido, rasgam as meninas sem hesitar, o que provoca certo desconforto em muitos dos primeiros rompimentos daquela película dérmica que chamam hímen. Embora tenha lido que possa se romper o hímen mesmo sem a penetração sexual, além disso, aqueles tabus de dor e sangramento no primeiro ato que apenas servem para aterrorizar mais a mulher e deixar o homem com mais vaidade por coagir aquela que acredita oprimir com seu membro viril. Na verdade, o homem que se torna desprotegido no sexo, sendo engolido, não podendo mais ter a visão da vida toda de seu falo. Ele que sempre aprendeu a expor seu membro, tem a violência de o ver engolido, escondido, conforme a mulher é doutrinada a fazer, por seu órgão voltado pra dentro. O órgão masculino é velado por uma imposição alheia, tornar-se cativo por cadeias inimagináveis, não se pode ver por dentro da fêmea durante o ato, talvez por isso muitos homens cismam em colocar e tirar, parece que para certificar que não perderam o “pinto” lá dentro.

Karina tinha orgulho de ser mulher, a sua menstruação era motivo de orgulho, não se sentia constrangida com isso, nem quando um dia de descuido fez com que vazasse pelas pernas, sujando-lhe as calças em público. Trabalhava em uma loja do comércio varejista, um dos colegas vendedores haviam se atentado e alertado a respeito, fazendo com que ela pedisse permissão ao gerente para sanar o problema, o que fez sem alarde. Nada que um banheiro com chuveiro pudesse resolver, para poder limpar-se, uma calça sobressalente, além de um pacote de absorventes que já carregara pelos cálculos de que o período menstrual aproximava-se, sem contar os sintomas já característicos que denunciam. O incômodo eram os seios, que aos olhares masculinos pareciam ainda mais volumosos e chamativos, para ela apenas sensibilidade que provocava dor quando levava um leve esbarrão. Sentia os seios intumescidos, duros que pareciam conter uma laranja dentro de cada um deles, daquelas bem rígidas que nem se espera ter caldo pra fazer um saboroso suco. A analogia era válida mesmo, pois os homens não poderiam espremê-los nessa época como de costume, não teriam seu “suco” garantido, teriam que aguardar a época do amadurecimento, onde a volta da flacidez lhe traria uma farta colheita. Era bem rigorosa nos hábitos de higiene, não deixava de se depilar ao simples sinal de pelos que denunciavam qualquer desleixo estético, as regras da bela estética feminina eram seguidas com rigor militarista. Os adereços eram sua paixão, adorava brincos, jóias em geral, sapatos também a encantavam, mas o motivo de maior empolgação eram os tratamentos com os cabelos, suas madeixas louras tinham um caimento volumoso que faziam sua aparência ser de uma princesa de filme medieval. Gostava de pintar suas unhas com cores vibrantes, para um contraste com sua pele pálida, nem o sol conseguia tirar-lhe aquela aparência cadavérica. No máximo, ganhava queimaduras que a fazia ficar avermelhada ao extremo, sem aquela cor amarronzada que via lindas morenas exibirem no verão, com aquelas marcas de biquíni que eram espreitadas por algum descuido no movimento.

Seu primeiro porre foi aos 15 anos, talvez um prelúdio a sua iniciação sexual que viria brevemente, já acostumada com cerveja, resolveu provar a vodka, tomando uma garrafa, quase levando a uma coma alcoólico, ficando apática, provocando vômitos e ausência de sentidos. Mas foi levada a um quarto, cercada de cuidados por familiares abismados com tamanha imprudência e falta de decoro, restabelecida no dia anterior, apesar das dores de cabeça intensas, além das repreensões dos pais que não pouparam seu estado de repouso. Aprendeu a beber com moderação, ou até ficar de pileque, mas sem chegar ao extremo de perder os sentidos, no máximo uma empolgação maior que a fez certa vez não ter limites em uma noite de sexo com o rapaz que namorava na ocasião, parecia insaciável. O namorado, também por ter bebido, não ao ponto de desmaiar de sono, mas de enrijecer-se esquecendo que poderia ejacular, o que rendeu um coito prolongado, horas e horas, os efeitos vieram no outro dia com suas pernas doloridas pelo exagero provocado pela embriaguez de ambos. Só tinham um disco de vinil na ocasião, pois o rapaz estava de mudança, foi assim que se despediu de sua antiga casa, ouvindo repetidas vezes o álbum “The Dark Side Of The Moon”, do Pink Floyd. Lembrava-se de terem se assustado com o barulho de despertador da música “Time”, o susto de um som que parecia um telefone, mesmo sabendo que já haviam levado na mudança tais regalias. O barulho da agulha deslizando pelo vinil, parecendo lenha crepitando, dava um clima ainda mais romântico, além da trilha sonora que é digna de uma boa noite orgiástica. No dia anterior acordaram com aquela sensação de boca seca, nem água havia naquela casa, fazia lembrar a música “A Casa”, do Vinícius de Moraes, e a letra veio à mente.

“Era uma casa muito engraçada

Não tinha teto, não tinha nada[...]”

Uma vez viajou com amigos para acamparem no final de semana, cenário belíssimo, cachoeiras deslumbrantes, paisagem deserta, privacidade, já aprendera a fumar, o hábito do tabagismo passou a fazer parte de sua vida, achava elegante. Com seus 16 anos precisou da autorização dos pais para tal viagem, mentira dizendo que era acampamento do grupo de jovens da igreja, havia coincidido um evento similar da comunidade eclesiástica que fazia parte, mas seus amigos de farra eram bem mais divertidos, além do interesse por um dos garotos do grupo. Naquele acampamento conheceu a marijuana, popular maconha, onde provou com leves tragos, embora não tenha sentido o que os outros pareciam descrever com suas atitudes, apenas seu corpo relaxou, ficou contemplando o fluxo das águas em cima de uma enorme pedra que servira de mirante. Descobriu uma caverna onde reparou que já estava habitada por morcegos que enfeitavam o teto, o que a fascinava ainda mais, pois sempre estes mamíferos voadores a agradaram. Foi também naquela gruta, sob a vigilância daquelas espécies aladas que foi possuída por Thales, a quem desejava, onde dispersaram-se do grupo e tiveram momentos íntimos sem preocupações externas, dentro do rochedo existia um pequeno lago que serviu de ducha após o sexo, onde puderam limpar-se das secreções e repetiram o coito com seus órgãos submersos naquelas águas calmas, agitadas por seus movimentos contínuos. Claro que quando retornaram os pais estavam cientes do engodo, o pai chegou a dar-lhe uma bofetada no rosto, fazendo com que chorasse e ficasse dias sem lhe dirigir a palavra, a não ser que fosse algo extremamente necessário. Mas valeu cada castigo por aquele final de semana que entrara para a sua lista de momentos inesquecíveis, não seria uma daquelas pessoas frustradas que reclamam do que nunca tiveram coragem de fazer.

Sentia-se superior ao pais, por não precisar viver de forma hipócrita, com aquela frieza que reparara desde tempos no relacionamento do casal, aquele ar cordial que procura esconder as desilusões guardadas no peito. Agia conforme sua vontade, mudava sua opinião conforme lhe conviesse, afinal de contas, aprendera na prática que credulidade demais apenas priva de conhecer outros prazeres. Sua forma de impor amedrontava os garotos que acabavam sucumbindo às suas extravagâncias, adorava ser cortejada por esse séquito guiado por desejos que são mais fortes que seu bom senso ou orgulho. Não fazia parte daquele estilo de mulher atraída pelo que o dinheiro pode comprar, seus valores não eram comerciáveis, um homem a atraía por sua postura e não por aquilo que conseguiu obter financeiramente, um gesto valia mais do que uma conta rechonchuda. Na escola opinava de forma impávida, não admitia o que sua mãe sugeria, que mulheres não devem se aventurar em intelectualismos, discordava de forma veemente, muitos exemplos desmentiam as palavras de descrença materna. Lera Clarice Lispector, não mais podendo depois disso acreditar em qualquer incapacidade intelectual feminina, era um exemplo dos que mais marcaram sua vida literária. Sua condição modesta fez com que trabalhasse precocemente, eram empregos que garantiam sua dignidade frente às cobranças de uma sociedade que tem como pressuposto valorativo a condição monetária ou o esforço para alcançá-la. Fez-se respeitar por suas atitudes honestas, ao mesmo tempo impetuosas, sempre chamava a responsabilidade pra si, não se rendendo a cavalheirismos mesquinhos, sabia que no fundo o desejo de um gesto cavalheiresco era para exigir posterior pagamento prostituído. Afinal de contas, a mulher era desejada enquanto coisa, os gestos eram para possuir o objeto de desejo masculino que tanto os cativava em sua lógica de garanhão, mas que só serviam para reforçar a idéia do quanto frágil era sua estrutura de auto-afirmação. Sua dignidade foi moldada por um egocentrismo que era o grande sustentáculo de quem é marginalizado frente a valores sociais que distorcem sua condição de ser, pois, quando o id se contrai e o superego se impõe, o ego é que infla para resistir tamanha afronta.