Um caso perdido da prosa romântica

O vento sacudia as folhas miúdas de um cipreste e arrastava papelitos pelas calçadas, levando-os a se agarrarem nos ferros esguios das grades. A rua estava deserta e Ariosto andava com as mãos enterradas nos bolsos a fim de protegê-las da forte intempérie do final de outono. Via se abrir diante de si a natureza esmorecida, com suas flores murchas despencando das hastes. Sozinho e contemplativo, ele deixava escapar um suspiro longo, permitindo à sua memória que trouxesse o rosto mimoso de Susana, vestida num roupão amarelo-claro com detalhes de raminhos dourados. Não fazia muito que havia saído de sua casa, sorrateiro, para evitar que algum ser oculto percebesse a presença daquele estranho que passara uma noite longa na casa de uma mulher sozinha, viúva não há muito. O que diriam sobre a conduta de Susana por não respeitar a partida do marido há não mais do que um mês, talvez? Mas por que não se permitiria Ariosto a enxugar as lágrimas de uns olhos delicados, já bastante abatidos pela dor de uma separação tão cruel? Ele mesmo já experimentara inúmeras vezes os dissabores da vida; afinal, não haveria pecado algum em suavizar o sofrimento de ambos, buscando, para isso, uma espécie de refúgio no corpo um do outro.

Ariosto, extasiado, ia, a passos curtos, pelo gramadinho úmido de geada, sentindo estalar sob os pés este fino lençol de gelo. Levava consigo o espírito tomado por sensações ainda vivas: a noite estendendo uma suave cortina negra sobre o corpo dos amantes, e um desejo latente abrasando o quarto e cochichando ao ouvido daquelas pobres almas toda sorte de malícias, levando-as a fazer daquele repouso um interminável campo de batalha, com mordidas, carícias e línguas de fogo; a chama das velas que tremulavam por conta, quem sabe, de uma brisa que se infiltrasse por entre as frestas da persiana; e as sombras, projetadas na parede branca, movendo-se como bailarinas infernais e alongando-se no bureau, sobre o qual Suzana lera tantos versos deliciosos feitos por Ariosto. Oh, o corpo de Susana tão docemente delineado pela luz ruborizada da madrugada! O amanhecer já descendo as torres do inferno e aquela mulher ainda feita à imagem de uma criatura em chamas, com suas mãos rasgando as espáduas avermelhadas daquele homem, fazendo verter sangue e suor...

- Oh, Susana! Oh, Susana! Quando a terei novamente? Daria tudo para que, da próxima vez, tu me dilacerasses! Eu faria pingar, se te aprouvesse, meu sangue e o néctar do teu sexo numa taça e a beberíamos juntos ou derramaríamos sobre nossos corpos esta magnífica infusão de substâncias.

Uma rajada de vento sacudiu, com violência, arbustos e roseiras do belo jardim de Susana.

- Ariosto! Ariosto! - disse ela, soluçando por detrás da janela embaçada pelo frio – Desespero-me por saber que não sentirei mais o toque dos teus lábios, nunca, nunca mais! Terei de me contentar com sorver, em gotas amargas, a lembrança desta última noite e saber, desiludida, que não sermos mais uma única alma com dois corações voltados um para o outro. Por que a morte nos faz tremer tanto e nos faz reviver o seu espetáculo irremediavelmente terrível? Por que não me deste ouvidos quando eu dizia que a morte de um é o nascimento de uma suspeita? Sempre seremos vigiados, nunca estaremos totalmente a sós. Por entre os destroços do passado, sempre escapa uma sombra, e esta nunca deixa de trazer num bolso uma carta da desgraça. Oh, Ariosto! Oh, Ariosto!

Tom Lazarus
Enviado por Tom Lazarus em 08/12/2011
Reeditado em 12/01/2017
Código do texto: T3378852
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