Dias [Per]Feitos (Romance Fragmentado: Parte 3 - Capítulo 10)

Parte III

Capítulo X

Lúcia havia acordado com receio do porvir, seus olhos abriram, mas manteve-se deitada, os raios luminosos invadiam seu quarto, por mais que desejasse a eternidade da penumbra. Com seriedade foi se arrumar para um novo dia de aula, diante do espelho no banheiro, fitava teus pequenos seios, pensava no quanto havia amadurecido ao longo de tão pouco tempo. Após tomar um banho demorado, como era seu costume, apesar das recomendações dos pais sobre tarifas altas de luz e água, além de reportagens que ressaltavam o não desperdício de recursos considerados vitais, mas não se privava desse prazer prolongado. Chegando à cozinha, os pais e a irmã já estavam sentados, cada um provando sua porção do café da manhã, Lúcia juntou-se aos familiares e saboreou aquela comida matinal com paladar do dia anterior. As irmãs saíram, Miguel, o pai, beijou Cecília, foi para seu trabalho, mais um dia de operário industrial. Chegou na empresa em que trabalhava, bateu o ponto como de costume, dirigiu-se ao setor de sua competência. Era mais uma peça daquela engrenagem de produção, fabricava carros, recebiam a matéria prima, realizavam a montagem de veículos automotores que seriam consumidos em larga escala no mercado popular. Um dia sua imaginação perscrutou o jornal que divulgava os índices de mortalidade por acidentes automobilísticos, tentou conceber quantos que ele produzira haviam se estatelado por alguma imprudência do condutor. Talvez alguns tenham sofrido acidente por ocasião de suposto equívoco na montagem, mas procurava não se responsabilizar por isso, acidentes acontecem, as estatísticas provam que se existe alguma culpa é dos motoristas, ainda assim, se compravam automóveis era por vontade própria. Poderia dormir tranquilo, apenas era um pai de família trabalhando para sustentar seus entes, talvez se fosse funcionário em uma fábrica de armas pensaria diferente, embora alguns qualifiquem o automóvel de uma arma nas mãos de certos indivíduos.

Miguel, nome de arcanjo que serviu de inspiração aos pais, que eram católicos ortodoxos, estava realizando sua refeição, o horário de descanso em meio ao expediente exaustivo. De repente, uma correria, alguém havia se acidentado, uma peça se desprendera, atingindo em cheio a perna de um jovem operário, rapaz com vinte anos de idade, agora, pelo que consta nos autos das notícias divulgadas pelo boca-a-boca fabril, teria sua perna amputada. Que desgraça, aleijado tão jovem, a dor deve ter sido imensa, os supervisores estavam preocupados com a repreensão, com certeza haveria auditoria, inspeção rigorosa, a empresa não costuma aceitar de bom grado os acidentes, precisam arcar com as despesas, responder inquérito. Quanto vale uma vida? A Lei irá determinar um valor, a família depois de passar por um trauma desses, terá que lutar na Justiça por seus direitos pecuniários, bem aquém da realidade dolorosa, é verdade. Naquele dia poderia compensar suas horas extras acumuladas, mas quando estava se trocando no vestiário, recebeu um chamado para comparecer à sala de um de seus supervisores. Chegando de forma cautelosa, foi recebido por um homem que nunca chegara a conhecer pessoalmente, onde recebeu a intimação fria e objetiva de que deveria depor no processo a favor da fábrica, que alegaria imprudência do funcionário acidentado, mesmo Miguel não conhecendo o rapaz, nem mesmo tendo presenciado o fato. Entendeu que seu emprego poderia estar comprometido, caso não desejasse mentir perante a Justiça, os olhos do supervisor denunciavam a intenção oculta, dizendo sempre que estava cumprindo ordens da alta cúpula, que seu pescoço também estava em jogo, cabendo a cada um sua cota de sacrifício. Como tantos milhões de empregados pelo mundo, o arcanjo rendeu-se à imposição empregatícia terrena, resolveu servir ao interesse patronal, mesmo arriscando um purgatório post mortem, pois deveriam levar em conta o sacrifício que fez pela família, que era um bem sagrado. Aquele dia voltou para casa com um ar sombrio, parou no sinal e seus pensamentos pareciam fluir de forma contínua, quando uma voz anunciou o assalto. Ao tentar retirar o cinto de segurança, o movimento brusco fez o meliante assustar, ocorreu um disparou que passou de raspão por sua têmpora, o sangue escorria, imaginou que morreria ali. O bandido fugiu sem conseguir algo de valor monetário, pessoas correram para acudir o homem baleado, formando uma multidão de curiosos que estavam mais preocupados em contemplar a tragédia do dia-a-dia.

Uma ambulância chegou, apesar do trânsito que dificultava o acesso, a polícia tentava colher depoimentos em vão, as pessoas não gostam de se comprometer como testemunha. Miguel era conduzido na viatura, seu carro foi levado por um guincho para perícia, na sua cabeça primeiramente o alívio por estar vivo, depois o pensamento de ter sido punido por sua irresponsabilidade frente ao sofrimento do jovem Afonso, era esse o nome do operário acidentado. O noticiário relatava mais um caso trivial de assalto no sinal de trânsito, Cecília que deixava o rádio ligado para acompanhar notícias e ouvir músicas que somente aquela estação recordava, enquanto as outras eram dadas a ritmos da garotada, algo que fugia a sua predileção auditiva. Estremeceu ao noticiarem o nome do operário baleado, correu para o hospital, estava aflita, precisava de informações, uma vizinha serviu de companhia. Chegando à unidade de saúde pública, o caos pelos corredores, mas por sorte conseguiu uma benevolente recepcionista que indicou o leito que o marido havia sido transferido. Foi tranquilizada por um médico ainda jovem, que dissera que o Sr. Miguel tivera muita sorte, estava em repouso, o estresse foi maior que o trauma do ferimento. Em poucas horas a dedicada esposa estava segurando a mão do enfermo marido, contemplando aquele olhar com um brilho esquisito dos que sabem como é quase abandonar a vida, sem necessidade de fazê-lo. O jovem médico, chamado de Dr. Edson, não pudera dar atenção maior ao casal, estava assoberbado, assumira fazia pouco tempo suas funções, lidava com a superlotação hospitalar, muitos casos, tantos que diversos passavam sem atendimento, poucos profissionais auxiliando. Sua rotina era exaustiva, sentia envelhecer precocemente, o cigarro tornara-se um companheiro nas horas de fadiga, sentia-se ainda muito disposto pela jovialidade e gana injetada na recente formação acadêmica. Será que seu entusiasmo demoraria quanto tempo para esvair, pois era o que os médicos experientes comentavam a respeito de todo novato na profissão, era apenas uma questão de “quando”.

Lúcia mais uma vez se escondeu na cabine em obras do banheiro feminino, ouvindo um choro baixinho, ao olhar pela fresta da lona, presenciou Roberta lavando o rosto na pia. Não se contendo, saiu da cabine, assustando a garota, que perguntou o que fazia ali escondida. Combinaram de sair para conversar, aproveitaram as aulas vagas por causa da falta de um professor, sendo que Roberta ausentou-se da aula por conta própria. Contou a Lúcia seus problemas familiares, sofria por sua mãe estar enferma, leucemia foi o diagnóstico, relatando como sua casa estava desestruturada. Uma sala que servia de almoxarifado foi o local que escolheram para conversar de forma velada, Lúcia não imaginara Roberta tão frágil, chorando daquela forma, expondo sua intimidade com tanta franqueza. Apenas escutou o relato dolorido da amiga, procurava não interromper, aquele era o momento de ouvir, mais do que falar, em certas ocasiões é preciso dar a palavra a alguém para que se expresse de forma única, como uma necessidade de exposição plena. De forma inesperada Roberta beijou os lábios de Lúcia, que não conteve o que havia pressentido ocorrer, até retribuiu, era algo muito novo, ao mesmo tempo eram íntimas de outrora, pelos relatos compartilhados em outra ocasião de desabafo. Depois de um longo abraço, retornaram às suas respectivas salas de aula, mas algo havia começado a partir daquele momento. Lúcia passava a ter em sua mente a imagem de Roberta, aquele beijo tão carinhoso, contrário aos beijos de meninos que tivera a oportunidade de provar, muito longe do contato asqueroso do Harry. Após o término da aula, foi até a turma de Roberta, foram juntas para casa, apenas avisou sua irmã Andréia que acompanharia a amiga que passava por um período complicado. Chegando à casa de Roberta, um silêncio imperava no ambiente, seu pai e irmão almoçavam, a mãe estava internada, iriam visitá-la mais tarde, Lúcia foi apresentada, recusou o convite para almoçar. Subiram ao quarto de Roberta, era uma decoração de boneca, cores combinando, brinquedos seguindo uma hierarquia estética, dissera que sua mãe tinha muito zelo para com sua filha única, sempre desejara uma menina para satisfazer os caprichos que não tivera na própria infância. Se despediram com outro beijo carinhoso, um olhar que dispensou palavras.

Lúcia chegando em casa, encontrou Andréia abatida, soube da tragédia com seu pai, foram ao hospital sob tutela de vizinhos prestimosos. Logo Miguel estaria retornando ao lar, suas filhas foram dispensadas de alguns dias do colégio por conta da notícia que se espalhou, a instituição educacional se sensibilizou. Ruan e Roberta ligaram para seus respectivos interessados para darem suas palavras de conforto. Alguns dias passados, Andréia recebera uma visita inusitada, Jair, o pai de Ruan, já conhecia o endereço da menina, muitas vezes ele mesmo levara o filho para visitá-la. Disse estar preocupado com o comportamento do rapaz, que estava mais desleixado quanto aos hábitos escolares, além de não ter cumprido com afinco os afazeres no comércio do tio, demonstrando uma perturbação diante dos últimos fatos. Andréia, com aquele pensamento que se apega à mente de apaixonados não correspondidos, resolveu agir de forma impulsiva, sem medir as consequência de seus atos, compartilhando com o Sr. Jair, era como o chamava, o segredo relatado pelo amigo, o caso com a professora. O pai ficou assombrado, seu olhar denunciava, apesar de manter a postura, procurar encerrar o assunto, pedindo discrição total por parte da jovem. Andréia ainda desfrutava daquela maldade prazerosa por atentar contra a rival, pois para ficar com Ruan valia a pena arriscar-se e agir de tal maneira, dizem que na “guerra e no amor vale tudo”. Sapiência de quem soube observar com perícia que em ambos os casos estão em jogo relações de poder, importando saber quem vence no final, ou pela reduzida visão que lhe haviam inspirado na leitura de Maquiavel, “os fins justificam os meios”. Jair meditava sobre as informações recentes, apesar do orgulho machista, pois imaginara que o filho poderia estar envolvido com drogas ou mesmo se bandeado para o homossexualismo, tendo em vista sua postura assumidamente homofóbica. Ainda assim, precisava esclarecer melhor a situação, foi até a escola, não encontrando a professora naquela ocasião, sua desculpa para uma entrevista com a educadora era a necessidade de discutir sobre o desempenho do filho, devido a problemas particulares que haviam enfrentado. A coordenadora forneceu informações relevantes, deixando escapar a recente separação da professora, que fizera ela ausentar-se em dado período, o que intrigou Jair, pois uma paixão adolescente por uma mulher amadurecida era saudável, ser iniciado nos prazeres da carne, mas daí assumir um relacionamento, era algo escandaloso e que colocaria o futuro promissor do filho em jogo.

Ruan, chegando em casa, encontrou o pai sentado no sofá, foi fitado por um olhar que o deixou preocupado. Jair pediu que o filho sentasse, sua mãe havia saído, conversariam de homem para homem, fazendo o rapaz antever o que viria naquela abordagem incomum. O pai não perdeu tempo em expor o assunto, não revelando quem havia lhe confiado o romance com a professora, salientando ter percebido uma postura anormal no filho. Ruan, acostumado a estudar o comportamento humano, ciente do perfil que seu pai desenvolveu, fez questão de desenrolar o caso à sua maneira, dando ênfase a um puro atrativo sexual, pedindo discrição sobre o assunto em relação à mãe. Ainda narrou o difícil processo de separação, para justificar suas atitudes nos últimos tempos, indo além, relatando o caso do pedófilo Henry, não revelando a parte mais melindrosa da trama, que envolvia inclusive o desaparecimento do sujeito, sem contar sua ação de portar uma arma de brinquedo e um punhal. O pai estava de novo orgulhoso em relação ao pequeno macho que concebera, entusiasmou-se com a coragem do rapaz, se recordou de feitos parecidos que realizou em sua adolescência, não condenou o desejo por uma mulher mais experiente, disse que manteria segredo, aquilo era conversa de amigos íntimos, não de pai e filho. Ruan, aliviado por ter se safado da minuciosa sabatina, logo em seguida ligando para Andréia e pedindo um encontro. Os dois jovens se encontraram em uma praça próxima à casa de Andréia, era um dia ensolarado, mas daqueles desabitados que parecem períodos frios em que as pessoas não desejam sair de casa, dia de sol com atitude humana de um dia frio. Ruan comentou a entrevista com o pai, Andréia ficou trêmula, depois frustrada, ao saber que seu intuito não havia se confirmado. Estava feliz com a companhia de Ruan, mesmo tendo o sentimento reprimido, resolvendo tomar uma atitude desesperada, onde expôs de forma seca o que sentia. Ruan ficou sem jeito diante daquela declaração de amor, seguida de um beijo, o rapaz não conteve o ósculo, mas depois assumiu uma postura indiferente, dizendo que precisava ausentar-se, estava transtornado com tudo que acontecera em um período tão curto. Andréia estava em êxtase, tocara finalmente aqueles lábios tão desejados, Ruan não resistiu, isso era uma vitória por certo, mesmo com a atitude posterior de retraimento, a verdade é que o rapaz permitiu aquele beijo de sentimento sincero.

Ruan caminhava pela calçada, indo em direção à sua casa, quando alguém veio em sua direção, não foi possível desvencilhar da pegada na gola da camisa, era Cléber, dizendo que precisava levar um recado à Karina. O rapaz, enfurecido, tentou reagir, mas foi socado com violência contra a parede, o ex-marido disse que suspeitava de um amante, que Ruan deveria dizer a ela que iria descobrir quem era, fazendo inclusive com que perdesse a guarda da pequena Júlia. Cléber foi embora subitamente, da mesma forma que apareceu, deixando um sentimento de fúria no coração do jovem amante, que havia se curvado diante da força física de seu rival, deveria se preparar para um possível embate no futuro. Naquele mesmo dia encontrou Karina, passaram momentos agradáveis juntos, evitou comentar sobre os últimos incidentes, não desejava preocupá-la, queria apenas proporcionar tranquilidade à sua amada. O que mais lhe preocupava era o beijo de Andréia, provavelmente perderia sua aliada fiel, pois deveria rejeitar o afeto da jovem, era bela por sinal, mas seu coração estava comprometido, além disso, não era dado à duplicidade amorosa, mesmo com a garota se comprometendo a assumir esse papel. Após o beijo ela lhe dissera que seria sua, mesmo ele se envolvendo com Karina, poderia inclusive assumir o papel de amante, desde que partilhasse seus sentimentos, o que fez Ruan emocionar-se, era um sentimento belo e intenso, não poderia desprezar algo tão tocante. Cléber seguiu o rapaz, acabou descobrindo o novo lar de Karina, aguardando a saída do jovem, indo bater na quitinete após se informar na portaria do andar e número. Sua ex-esposa se recusava a atendê-lo, recordando a recomendação da delegada, mas Cléber disse estar ciente de tudo, fazendo Karina abrir a porta. Entrando, foi direto ao assunto, disse ter conhecimento do caso dela com Ruan, exigia que renunciasse ao que chamou de “aventura adolescente”, retornando ao antigo lar, ou tornaria público aquele episódio, ainda pedindo para si a guarda da filha, alegando ainda o romance dos dois vir de longa data, antes do rompimento entre eles. Abandonou Karina ajoelhada, em prantos. O desespero de sua ex-esposa era muito além do que supusera, pois havia feito um exame, constatando gravidez, apesar das precauções, alguma ocasião passou despercebida, estava esperando uma criança de outra criança, pelo menos assim seria perante os olhos da sociedade. Seu choro era de agonia, rolava no chão segurando a barriga, Ruan como por um pressentimento, esqueceu suas chaves, em cima da pequena cômoda, na quitinete de sua amante. Retornando para pegá-las, ao verificar que a porta estava destrancada, entrou e se deparou com aquela cena, Karina em prantos, encolhida no chão em posição fetal. Ao tomar conhecimento de tudo que ocorrera, Ruan expôs também todos os últimos acontecimentos, pela primeira vez um abismo foi criado entre eles.