Dias [Per]Feitos (Romance Fragmentado: Parte 3 - Capítulo 11)

Capítulo XI

Andréia soube de um show que ocorreria em um bairro próximo a sua casa, o estilo das músicas era hardcore, resolveu comparecer com algumas amigas, uma forma de aliviar a tensão, esquecer dos problemas que atormentavam sua mente, sendo que o mais insistente era o sentimento em relação ao Ruan. Chegando no local do evento, um pequeno aglomerado estava se formando em volta da casa de shows, antes um prostíbulo que foi adquirido por novo proprietário, a decoração modificou, o ambiente era escuro e dava impressão de pouca higiene, mas era algo familiar no cenário “underground”. Resolveram beber cervejas, alguns rapazes tentavam explorar o mulheril com abordagens bem objetivas, poucos obtinham êxito, o dia estava ensolarado e a claridade com aquele céu azul de nuvens esparramadas, contrastava com aquele volume de uniformes pretos. Os portões foram abertos, as mulheres não precisavam pagar a entrada, isso irritava muito Andréia, imaginando que era um embuste machista, que facilitavam a entrada das garotas para que essas fossem fáceis aos machos de plantão. Antes todos pagarem o mesmo valor do que essa prostituição enrustida, onde as mulheres também servem de chamariz a um público masculino, mais interessado em saciar sua libido do que em apreciar o espetáculo propriamente dito. A primeira banda começou a tocar e não impressionou a jovem, que se dirigiu ao bar e começou a beber doses de tequila, até apoderar-se de uma garrafa para si. Os shows foram ocorrendo, a bebedeira aumentando, o “mosh” no centro estava empolgado, apesar do público diminuto. As amigas decidiram explorar outros ares, Andréia acompanhou a aventura, saindo todos de carro com intuito de apreciarem a vista em um ponto da cidade que era possível contemplar a grande extensão daquela metrópole. Douglas dirigia um Tempra, ocupado por quatro integrantes no banco traseiro, as amigas Pamela e Erica, no meio estava David, no banco carona Andréia cantava sob efeito do álcool, o mp3 player tocava Slayer. Os três jovens estavam se beijando atrás, um “ménage à trois” magnífico, observado pelo motorista no espelho retrovisor, a letra da música “Postmortem” dizia:

“Taste your blood

As it trickles through the air

Another casualty

Beyond the shadows you fall

Losing ground

The fate you feel

It draws near

Fatality, reality

You await the final call”

O olhar de Andréia perdido pelo vidro da porta lateral, contemplando a luminosidade escassa diante do breu noturno, até que o automóvel acertou algo em cheio, fazendo Pamela gritar. Douglas tentava manter o controle do veículo que ia de uma pista à outra, um ziguezague serpenteante, até um giro de 180° que fez o automóvel parar em sentido contrário à sua mão, todos assustados com o incidente. Resolveram voltar, verificaram que um cão vira-lata havia sido atropelado, o motorista estava mais preocupado com um pequeno amassado em seu pára-choque, Andréia observava o sangue que escorria da fronte do animal, disse que desejava ir embora, antes segurou as patas do infeliz animal com a ajuda de David e colocaram-no à margem da estrada. Os jovens seguiram o caminho de volta em silêncio, durante o trajeto, Andréia vomitara pela janela do veículo em movimento, salpicando resquícios de vômito no vidro traseiro, que por sorte estava suspenso. Chegando em casa foi direto para seu quarto, seus pais assistiam tv, não preocupados em verificar o estado que a filha chegara. Tomou um banho demorado, chegando a vomitar uma segunda vez dentro do box, observando restos de comida de coloração alaranjada que se misturavam com a água e sabão, todos com o mesmo destino, o ralo. Trocou de roupa e deitou-se, dormindo quase de imediato.

Miguel, já recuperado, retornara ao trabalho, em uma auditoria feita na empresa em que trabalhava, alguns inspetores estavam fazendo perguntas, verificando toda a estrutura daquela indústria. Foi chamado à sala do supervisor, era chegado o momento de seu testemunho diante das autoridades competentes responsáveis pela sindicância apresentada contra a montadora. Ao aguardar ser chamado, contemplou momentos antes Afonso adentrar a sala com ar desanimado, deparando-se com a imagem de sua perna, ou melhor, da ausência dela. Passou pela sua cabeça um sentimento de piedade, imaginando a perda de um membro, quando machucamos um dedo, evitamos tocá-lo, a falta que faz aquele membro, apesar de presente, sendo deixado de lado. No caso de Afonso, não estava de lado, mas ausente, sua perna fora retirada, deveria conviver com o vazio que preencheu o lugar antes ocupado por uma extensão de seu corpo. Havia lido uma reportagem feita por médicos renomados com relatos de amputados, tratava da dor que pacientes sentiam nos seus “membros fantasmas”, como diziam. A falta era tão sentida pelo organismo que com estímulos fazia o sujeito sentir dor no membro, mesmo sem a presença palpável. A porta da sala se abriu e um jovem de terno bem alinhado pediu que Miguel entrasse. O operário penetrou a sala mudo, sendo perseguido pelos olhares do grupo de homens que circulava a mesa central, mas era o supervisor que o fitava de forma mais sombria. Estava tudo sendo anotado e gravado, logo foi questionado sobre sua presença no incidente e suas impressões acerca do ocorrido e da empresa. Miguel sendo avisado aquele dia do encontro com inspetores, foi trabalhar com roupa social, sem a necessidade do habitual uniforme, sentindo um nó em sua garganta, abriu o colarinho da camisa, respirou fundo, encarou o supervisor, começando a fazer seu relato testemunhal. Comentou sobre sua ausência no incidente, não podendo dar maiores esclarecimentos, mas que a postura de Afonso era correta no cotidiano, além da empresa muitas vezes deixar a desejar no quesito segurança. A surpresa do acidentado foi grande, mas muito menor do que a revelada na expressão dura do supervisor, que mordeu os lábios, aguardando o final daquela entrevista.

Karina decidiu não ceder a chantagem de Cléber, ainda foi à delegacia e denunciou o ex-marido, que foi intimado a comparecer no distrito. Após tal episódio, Karina também foi chamada para depor, a delegada comentou sobre acusações de traição, aliciamento de menores, que foram feitas por Cléber. Logo o caso se tornou público, o ex-marido de Karina fez questão de divulgar na escola a informação, ainda com prova material, havia fotografado o casal de amantes se beijando em um parque da cidade. Ruan ao chegar na escola para mais um dia comum de aula, foi surpreendido por uma multidão que o cercou, a diretora da instituição desvencilhou o rapaz dos curiosos e o conduziu até sua sala. Seus pais estavam à sua espera, haviam sido acionados assim que alastrou a notícia, encontravam-se em evidente nervosismo, pediram a demissão sumária da professora. Karina, por coincidência, devido aos problemas causados pelo ex-marido no depoimento feito à delegacia, faltara aula para resolver a questão, não tomando conhecimento do caso, seu celular estava com a bateria descarregada, não recebeu nem mesmo a chamada de Ruan para alertá-la. Foi até a escola onde trabalhava para desculpar-se pela ausência sem justificativa, ao entrar no pátio alguns alunos riram e apontaram em sua direção, fazendo um frio invadir sua barriga. O porteiro não retribuiu o cumprimento de boa tarde, olhando de forma grave para seu rosto. Ao entrar na sala dos professores, alguns poucos colegas de profissão que se encontravam presentes, começaram a dispersar, a diretora veio imediatamente a seu encontro, conduzindo Karina até sua sala. Ruan estava em casa, os pais haviam lhe dito muitas coisas que o magoaram, sua mãe ainda disse que pretendia mover uma ação contra o que chamou de “corruptora de menores.” O rapaz assumiu responsabilidade sobre o caso, disse estar apaixonado, veio à tona todo seu amor, não conteve mais seus sentimentos, explodiu diante da situação, quase recebendo uma bofetada de seu pai.

Uma audiência foi marcada, reunindo pais, diretora, aluno e professora, seria em um local anexo à escola, para evitar aglomeração de curiosos, sendo também restringida a informação do horário aos interessados. Karina voltou para casa desorientada, soube que Cléber já entrara com uma ação pedindo a guarda da filha, o desespero tomou conta de sua pessoa, pedindo inclusive a presença do ex-marido à reunião que decidiria seu destino. Ruan, desconsolado, foi até Andréia, relatou tudo que ocorrera, comovendo a amiga com sua história, pedindo que a mesma o acompanhasse àquele dia difícil que havia sido agendado. Estavam diante do computador, se distraindo com jogos virtuais, decidiram descer para lanchar, Miguel assistia tv. O operário após ter ido contra os interesses da empresa em que trabalhava, foi convocado para uma audiência com seu supervisor, onde foi chamado de tolo, pois outros operários com maior credibilidade inclusive já haviam relatado a favor da montadora, o seu ato de “vulgar heroísmo”, como disse o superior, apenas o deixou na corda bamba no emprego. Sabia que não poderia ser demitido de forma sumária, pois despertaria suspeitas à inspetoria que investigava a empresa, mas sentiu-se feliz com o sorriso de Afonso ao agradecê-lo por ter dito a verdade, mesmo não o conhecendo de fato, ao contrário de muitos conhecidos que o entregaram aos “leões”. Miguel só precisaria ficar atento, qualquer equívoco seria motivo para uma demissão, sem contar as ciladas que poderiam estar por vir. Andréia e Ruan ao lado de Miguel acompanhavam o noticiário, quando um repórter apresentou uma matéria, sobre um homem de trinta e seis anos, encontrado morto em um local abandonado, reduto de traficantes. Dizia que procuravam a vítima depois do desaparecimento, o carro havia sido furtado, sendo encontrado muito antes do corpo, a investigação dizia que o nome do empresário era Humberto Alcântara, deixando mulher e um casal de filhos. Ruan e Andréia estremeceram diante daquela reportagem, pedindo inclusive que Miguel aumentasse o volume. Um investigador foi entrevistado, disse que após o desaparecimento do empresário, fizeram uma minuciosa busca. Pois já suspeitavam do Sr. Humberto envolvido em um esquema de pedofilia, o caso de seu assassinato foi um “acidente”, pelo fato de ter sido capturado por traficantes que provavelmente realizaram um sequestro relâmpago com desfecho fatal. Já que averiguaram saques realizados em diversos caixas eletrônicos com o cartão de crédito da vítima, as câmeras do circuito interno do banco demonstraram a presença do empresário sendo conduzido pelos meliantes. Muitas vítimas do pedófilo vieram prestar depoimento após o reconhecimento do rosto de Humberto no noticiário. Lúcia foi informada sobre o ocorrido, enquanto Ruan e Andréia buscavam mais informações sobre o caso na internet. Apesar de nenhum deles revelar, mas a expressão era de certa parcela de culpa naquele desfecho, apesar do repúdio ao facínora.

Lúcia precisava rever Roberta após aquela revelação do noticiário, ansiosa por algo além do simples desabafar, desejosa dos braços e carícias de sua nova confidente. Ao chegar a casa de Roberta, após relatar todo o caso, receber as carícias habituais, ocorrera algo inusitado. Aumentou a excitação naquela alcova, a casa como de costume estava sem a presença de outros parentes, teriam liberdade suficiente para carícias mais ousadas. Foi naquele quarto de boneca que Lúcia aprendeu pela primeira vez o prazer do sexo, nunca havia nem mesmo se masturbado, no máximo uma excitação que fizera umedecer a calcinha. Adquiriu certo repúdio aos homens, o incidente com Harry, agora conhecido como Humberto, provocara uma reação traumática. Roberta teve a delicadeza de um mago ao conduzir o neófito para as primeiras experiências mágicas, deixando a aprendiz explorar por si, no seu ritmo, conduzindo quase de forma despercebida, uma suavidade típica da sedução feminina quando se presta a leves movimentos. Eram toques intensos a ponto de provocar arrepios, jorros, gemidos, a cada instante um gozo, uma descoberta mútua entre iguais, pelo menos igualitárias na questão de gênero, mas os corpos revelavam suas singularidades. Lúcia ainda tentava conter as carícias de Roberta no seu local velado, ainda sentiu certo nojo ao ver a amante provando onde outrora jorrara aquele repugnante sangue menstrual. Mas também aprendeu a saborear novos gostos que excitavam seu paladar ainda inocente, se é que existia alguma inocência preservada naquela criatura tão jovialmente castigada. Embora nós estejamos sempre a mercê de alguma inocência, aquela expressão infantil que toma a face de qualquer indivíduo ao deparar-se com uma nova descoberta, existe o brilho no olhar de fascinação, o riso sem graça da surpresa, até algum grito mais extasiado em alguns casos. O cheiro de sexo invadiu o ambiente e nem fizeram questão de repelir aquele aroma que somente os amantes desfrutam, ainda consumaram aquele especial momento banhando-se juntas, naquela pequena suíte, o box comportava de forma espremida as duas garotas. O banho a dois costuma ser mais farra do que higiene, as brincadeiras, a água sendo borrifada à revelia, as mãos ensaboando de forma desordenada, o tempo excessivo sob aquele fluxo aquoso contínuo.

Ruan se encontrara com Karina, conversaram sobre o trágico episódio, muitas lágrimas foram derramadas por um sofrimento antecipado. Em alguns momentos ficaram apenas mudos, pareciam aprofundar-se em um silêncio com esperança de serem contemplados por alguma revelação inconsciente que ajudasse a resolver o enorme problema. Karina já havia sido demitida da escola, procuraram abafar o caso, pois também prejudicava a imagem da instituição, os alunos foram induzidos a acreditar que tudo não passara de um boato sórdido. No outro dia ocorreria o encontro, a ansiedade tomou conta de todas as personagens envolvidas, nenhuma delas pregou os olhos durante a madrugada da véspera. Ruan e Karina fizeram amor de forma que compensasse caso fosse sua última vez, de uma intensidade que os fez emocionar durante o ato, a harmonia naquele momento reinava diante do sentimento daquele romântico casal, eram um só por terem se dissolvido no gozo liberto, permitindo-se liquefazer através de secreções não contidas.