O presente de Natal
 
Eram cinco irmãos. Uma menina, um guri, outro guri, outra menina e mais uma menina. Uma escadinha.
 
Eu e os dois guris na mesma escola, mesma série, mesma turma. Ficamos amigos. Um dia, convidaram-me para brincar na casa deles. Na rua não podiam. Concordei.
 
Educação rígida, meninas não brincavam com meninos. Todos muito educados. Cheguei. As meninas apareceram para as apresentações. Depois sumiram. Tímidas. A menor nem tanto. Cara de sapeca. Fiquei encantado com a do meio. Bonita como as outras, mas diferente. Tocou-me fundo.
 
Passei a frequentar a casa, para brincar com os meninos. Sempre o mesmo ritual. As meninas apareciam, cumprimentávamo-nos, desapareciam. Eu cada vez mais apaixonado pela do meio. Vou-me casar com ela quando crescermos, pensava sempre.
 
Convidavam-me para os eventos da família. Aniversários, casamento da tia Isis, palestra do padre missionário com slides da sua missão na África. Primeira comunhão.
 
Missa todo domingo. Dom Pedro Fedalto era só o Padre Pedro e rezava a missa das crianças na Igreja do Divino. Não faltávamos.
 
Mudaram de bairro duas vezes. Fui atrás. Ia visitá-los quando podia. Primeiro, em dias de semana. Depois, porque comecei a trabalhar, só aos sábados ou domingos. Eu me sentia muito mais feliz pela oportunidade de vê-la do que pela visita em si. Na véspera, sonhava com ela. Na noite seguinte, sonhava duas vezes. Quando crescermos, vamos nos casar...
 
O tempo foi passando, e a vida de cada um aos poucos se modificando. Já não estudava mais com os meninos. Eles mudaram de colégio. Não perdemos o contato, mas a frequência com que nos víamos diminuía gradativamente.
 
A última vez que a vi foi no casamento do irmão mais novo. Eu com minha mulher, ela com o marido. Sentamo-nos à mesma mesa. Conversei bastante com ele. Boa praça. Achei que ela estava em boas mãos. Não nego aperto no coração, de leve. Não me casei com ela...
 
O irmão mais velho morava na capital federal e não foi ao casamento. Mandaram o convite, mas não conseguiram contato com ele. Problemas de telefone. Contei que semanas atrás eu tinha viajado a Brasília, a trabalho, e aproveitado para visitá-lo. Aceitei o gentil convite para jantar na sua casa.
 
Menos de mês depois, iria à capital novamente. Descobri o telefone dela. Liguei para saber se queria alguma coisa, talvez mandar um recado para o irmão. Maior o pretexto do que a vontade de servir. Na verdade, queria apenas ouvir a sua voz. Meu coração acelerado, ela do outro lado. Minutos apenas. Foi a última vez que nos falamos.
 
Em 2011, topei com ela numa rede social. Estranhei o nome completo de solteira e não o de casada. Nas fotografias, inteirona. O tempo foi mais generoso com ela do que comigo. Dúvida. Tinha um cara ao seu lado em algumas fotos. Não era o marido. Seria mesmo ela ou uma incrível homônima? E o homem, quem seria? Deixei uma mensagem.
 
- É você?
 
Respondeu que sim. Trocamos informações, forneci meu e-mail.
 
Dias depois, mandou-me bela mensagem. Passei a mandar para ela outras com seus temas favoritos.
 
Divorciada, quatro filhos e uma porção de netos. Contou-me.
 
Nunca perguntei sobre o acompanhante nas fotos. Nem precisava. Certamente eu não iria gostar da resposta. Fosse o marido, não sentiria ciúme. Mas namorado? Parecia que foi este o que tomou o meu lugar e não o outro.
 
No aniversário dela, produzi um cartão e mandei por e-mail. Colhi as rosas vermelhas mais belas da Internet e com elas preenchi o espaço todo como marca d’água. O texto em lucida handswriting azul. No centro, os cumprimentos. No rodapé, em corpo menor, confessei: quando éramos crianças, eu achava que iria me casar com você. Hoje, estou-lhe dando de presente este segredo.
 
Modéstia à parte, o cartão ficou muito bonito. Feito com o coração, não podia ser diferente.
 
Respondeu agradecendo e surpreendendo-me:
 
- ...e quer saber de uma coisa? Eu também achava o mesmo.
 
Voltei meio século e a vi, tímida, carinha feliz, dizer sorrindo: eu aceito. Também gosto de você.
 
Tremendo no teclado, enviei:
 
- Puxa! Agora quem ganhou o presente fui eu. Foi uma pena o desejo não se ter concretizado. Acho que ainda estaríamos juntos, a caminho das bodas de ouro...
 
Ela estava online. A resposta veio na mesma hora:
 
- Fiquei sem palavras...
 
Em outro e-mail, contou-me que certa vez, quando eu estava na sua casa, uma amiga apareceu para brincar. Após me ver, confidenciou a ela que me achou bonitinho. Brigou com a amiga, dizendo que eu era muito sem graça. Sem conseguir disfarçar a contrariedade, ficou de mal com a menina.
 
A irmã mais velha, que assistia à cena, estranhou a atitude impulsiva e depois de perguntar-lhe se não gostava mais de mim, acrescentou com uma risada gostosa e debochada:
 
- Você ficou tão irritada... Só pode estar com ciúme.
 
Mais zangada ainda, ela brigou com a irmã também.
 
Algum tempo sem mandar notícias. Numa segunda-feira perguntei se tinha sumido e como tinha sido seu fim de semana.
 
Dias depois, parecendo nervosa e apressada, respondeu que não tinha sumido e que teve um final de semana muito agitado. Sexta, reunião com os amigos. Sábado foi dançar, e domingo curtiu os netos.
 
Perguntei aonde tinha ido dançar e com quem. Na certa com o namorado, pensei.
 
Dois dias e uma resposta mais tranquila. Parecia mais calma. Disse que fora dançar com um amigo para esquecer o namorado e que dançar fazia-lhe muito bem.
 
Percebi que ela estava sofrendo. Fiquei com raiva dele - o namorado - e com remorso. Culpei-me pelo seu padecimento. Então, na semana do Natal de 2011, mandei com sinceridade:
 
Querida... (sempre tive vontade de chamá-la assim, de querida, agora chamei). Sinto-me um pouco, ou muito, não sei, culpado pelo que você está passando. Tivesse eu sido dotado de mais inteligência e cinquenta anos atrás poderia ter mudado o rumo das nossas histórias. Eu era louco por você, mas acho que o temor de uma recusa impedia-me de uma aproximação maior. Então o tempo passou e nossas vidas tomaram caminhos diferentes. Se eu soubesse que o amor estava tão ao meu alcance, não o teria ido procurar em outros lugares e em outras pessoas. Poderia ter sido o seu único e você a minha única. E assim, eu creio, nós dois, juntos, ainda estaríamos escrevendo a mais bela história de amor. Teríamos, então, mais um Natal lado a lado. Um doce beijo de Feliz Natal (sempre quis beijá-la com doçura, agora beijei).
 
Na antevéspera do Natal, ela respondeu:
 
- ...me senti presenteada com tão linda mensagem. Um beijo.
 
Eu nunca lhe dera um presente de Natal; nesse ano, dei-lhe um. E ela não me havia beijado antes; agora, senti no meu rosto de guri a maciez dos seus lábios de menina.
 
 
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N. do A. (1) - Na ilustração, as rosas do cartão de aniversário.

N. do A. (2) - Dias após a publicação deste texto, o autor recebeu da menina reencontrada um e-mail emocionado e que muito o comoveu. Ela dizia que este relato e confissão tinha sido o melhor presente de Natal de toda a sua vida. O autor nem soube o que dizer; o coração, batendo forte no peito, disse tudo.
João Carlos Hey
Enviado por João Carlos Hey em 05/01/2012
Reeditado em 13/12/2022
Código do texto: T3423845
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