Edna S., a que ia ser mãe - REPUBLICAÇÃO

I

Fazia oito meses que Edna S. se encontrava reclusa numa das celas da Cadeia da Praia do Canto, na cidade de Vitória, estado do Espírito Santo. Fora apanhada numa das ruas da capital portando uma pequena quantidade de maconha e enquadrada no artigo doze da Lei de Tóxicos.

No período em que esteve na prisão a vida daquela capixaba havia sido completamente revirada do avesso. Fora como se as coisas tivessem saído definitivamente dos eixos, dos trilhos, do rumo e do prumo.

Mas aquele período de sua vida representava muito mais do que isso: os dias de uma prisioneira no sistema carcerário são sempre perigosos e difíceis – principalmente se essa mulher estiver esperando um filho.

Edna sempre fora muito franzina. Mas ainda que naqueles tempos ela provavelmente se aparentasse mais magra e miúda do que normalmente pareceria ser – a barriga da mulher crescia a olhos vistos.

Qualquer um poderia perceber claramente ali que o ser que viera a lhe ocupar o ventre e a preencher os espaços do seu coração e do seu pensamento, nos últimos tempos lutava com todas as forças para se desenvolver e vir ao mundo.

II

Nas poucas vezes em que se via sozinha em sua cela, Edna se punha a pensar no quanto a sua barriga crescera de fato e em como já não lhe permitiria correr tão velozmente quanto antes. Se não a trouxesse tão pesada e disforme, certamente teria podido fugir dos seus perseguidores e escapar ilesa daquela vida difícil a que fora entregue desde que chegara ao presídio. Se não a carregasse consigo – continuara em seu pensamento – poderia ter desaparecido como um corisco e não haveria ninguém no mundo capaz de alcançá-la. Ninguém mesmo.

Lembrava-se então dos tempos de menina e adolescente nos quais uma das suas alegrias se achava em sair em desabalada corrida pelas ruas e vielas do lugarejo onde nascera. Posteriormente, ao mudar-se com os pais para a cidade de Vitória, as suas corridas e disparadas passaram a se dispersar por caminhos agora enfeitados pelo Sol, a areia fina das praias e o gosto salgado da água do mar. Correndo descalça sobre a areia clara, sentia o zunir do vento em suas costas e o sopro da brisa batendo suavemente contra o seu rosto e convidando-a a participar da valsa da vida.

Sentia-se completamente feliz naqueles momentos. Conseguia captar todo o seu corpo, desde o balançar livre dos cabelos ao movimento repetitivo dos braços. Tudo aquilo lhe prenunciava então qualquer coisa de especial e muito livre que ela ainda não conseguia entender perfeitamente. Mas pressentia ali todo o prazer de correr e correr até se sentir exausta e sem fôlego, com o coração batendo forte no peito e meio que lhe querendo pular boca afora.

Em toda a sua vida, aliás – concluíra ela – as coisas foram acontecendo quase sempre daquele jeito. Fora assim com a sua infância e adolescência: chegaram rápidas e se foram mais velozes ainda. Em seguida, mal se fizera mulher, engravidara.

Sim! Tudo em sua vida transcorrera de forma muito veloz e quando num momento ou noutro parava para pensar sobre isso sempre se sentia um pouco frustrada e angustiada.

Mas se já não podia correr com toda a liberdade e desenvoltura que possuíra antes, sentar-se era lhe ainda mais difícil. Agora que transportava outro ser dentro de si, o simples fato de permanecer durante algum tempo numa mesma posição era o suficiente para fazer com que se sentisse cansada. O mero ato de sentar-se numa cadeira bastava atualmente para fazer com que ficasse extenuada diante do excessivo peso da barriga e aquilo acabava produzindo nela intensa falta de ar e sensação de formigamento nas pernas.

Fora por tudo isso que ela acabara se acostumando a permanecer de pé tanto na cela em que habitava quanto no pequeno espaço que lhe fora destinado para tomar Sol no pátio da prisão e até que, esgotada, encostava-se em algum canto do muro ou no catre de madeira em que dormitava.

Na tarde do dia anterior uma das companheiras de Edna afirmara ter absoluta certeza de que ela estava carregando uma menininha consigo. O formato redondo e o tamanho absurdo da barriga – dissera a prisioneira - indicavam a gestação de mais uma infeliz. Ao ouvir aquilo os olhos de Edna brilharam e se encheram de lágrimas ao mesmo tempo.

Na manhã do dia seguinte, nove de agosto de 1978, Edna deveria comparecer pela primeira vez perante um juiz.

III

Quando viu aquela pequena mulher dar entrada em sua sala de trabalho no Fórum de Vila Velha, o juiz sentiu de imediato um arrepio e um aperto no peito. A prisioneira a princípio lhe afigurara estar muito magra e pálida. Além disso, carregava uma criança no ventre.

Não era a primeira vez que o juiz se encontrava diante de uma situação semelhante. Seus anos de vida e a intensa experiência de trabalho já lhe haviam proporcionado cenas como aquela. Em cada uma daquelas situações, no entanto, o juiz sempre se sentira extremamente frágil tanto em relação a sua profissão quanto a sua condição de pessoa.

Sabe-se, porém, que o coração dos homens cria às vezes as suas próprias leis, razões, caminhos e descaminhos. E de repente fora como se naquele momento o Dr. João Batista houvesse se deparado de uma maneira totalmente diversa diante daquela mesma visão que ele já houvera experimentado outras vezes.

Em casos como aquele era possível que viéssemos a experimentar duas espécies de sentimentos bem distintos: ou a vida dá uma volta completa e se fecha sobre si mesma ou se abre definitivamente e segue adiante fazendo com que uma percepção mais completa da existência tome conta do nosso ser.

São de fato insondáveis os variados caminhos dessa vida.

(Tempos depois, ao se acomodar no sofá de sua casa para refletir sobre tudo o que lhe acontecera durante aquele dia, o juiz chegaria a uma importante conclusão: só por ter vivido os acontecimentos daquela tarde e todos os sentimentos que lhe surgiram a partir do encontro com aquela gestante, só por isso com certeza já teria valido a pena ter sido juiz!)

Naquele momento, porém, logo que se avistara a mulher, o Dr. João Batista não conseguira mais se conter: solicitou a imediata presença de sua escrivã e pediu que ela registrasse nos autos daquele processo tudo o que ele iria explanar a partir daquele momento.

A prisioneira se fizera completamente silenciosa. Seu coração mais uma vez parecia querer saltar para fora de sua boca como nos tempos em que ela saia correndo livremente pelas praias de Vitória. Imaginara que iria ouvir ali qualquer coisa de muito grave e ruim, provavelmente uma boa quantidade de palavras duras e secas que buscariam apenas apontar e recriminar a sua conduta atual e o seu passado.

No entanto – e exatamente ao contrário – viu sair dos lábios daquele homem sábio as palavras mais doces que ela já ouvira, talvez as primeiras que a haviam verdadeiramente tratado de uma maneira digna e respeitosa em toda a sua vida.

Era então pouco mais de três horas da tarde. E foi ali – no meio de um expediente recheado dos mais variados problemas – que o juiz, emocionado, principiou a ditar as seguintes palavras para a sua escrivã:

“A acusada é multiplicadamente marginalizada: por ser mulher, numa sociedade machista; por ser pobre, cujo latifúndio são os sete palmos de terra dos versos imortais do poeta; por ser prostituta, desconsiderada pelos homens mas amada por um Nazareno que certa vez passou por este mundo; por não ter saúde; por estar grávida, santificada pelo feto que tem dentro de si, mulher diante da qual este Juiz deveria se ajoelhar, numa homenagem à maternidade, porém que, na nossa estrutura social, em vez de estar recebendo cuidados pré-natais, espera pelo filho na cadeia.”

Nesse ponto o Dr. João Batista fizera uma breve pausa e dirigiu um olhar significativo na direção das duas mulheres que se achavam em sua companhia, Edna e a escrivã Valdete.

Esta última devolveu o olhar ao juiz e balançou a cabeça de modo afirmativo, como se estivesse proferindo a ele uma palavra de ordem: o meritíssimo está certo, não pare, continue, vá em frente!

E foi o que fez o juiz:

“É uma dupla liberdade a que concedo neste despacho: liberdade para Edna e liberdade para o filho de Edna que, se do ventre da mãe puder ouvir o som da palavra humana, sinta o calor e o amor da palavra que lhe dirijo, para que venha a este mundo tão injusto com forças para lutar, sofrer e sobreviver.

Quando tanta gente foge da maternidade; quando milhares de brasileiras, mesmo jovens e sem discernimento, são esterilizadas; quando se deve afirmar ao Mundo que os seres têm direito à vida, que é preciso distribuir melhor os bens da Terra e não reduzir os comensais; quando, por motivo de conforto ou até mesmo por motivos fúteis, mulheres se privam de gerar, Edna engrandece hoje este Fórum, com o feto que traz dentro de si.

Este Juiz renegaria todo o seu credo, rasgaria todos os seus princípios, trairia a memória de sua Mãe, se permitisse sair Edna deste Fórum sob prisão.

Saia livre, saia abençoada por Deus, saia com seu filho, traga seu filho à luz, que cada choro de uma criança que nasce é a esperança de um mundo novo, mais fraterno, mais puro, algum dia cristão.

Expeça-se incontinenti o alvará de soltura”.

Assim que proferiu aquela última palavra, João Batista Herkenhoff se calou e sentiu que seu coração estivera prestes a explodir, mas que agora se aquietara subitamente. Como uma criança recém-nascida, seus pulmões aspiravam com sofreguidão todo o ar que lhe era possível.

IV

Edna escutara a tudo de pé, entre silenciosa e aflita. Ao ouvir, porém, a palavra “soltura”, seus olhos se encheram subitamente de lágrimas e em seguida se iluminaram com um brilho profundo e diferente. Um sorriso de pura alegria surgira em meio ao rosto cansado e pálido da mulher.

Junto com a satisfação que sentira ao saber que lhe seria permitido deixar de uma vez por todas a cela escura e fria aonde passara a maior parte do seu tempo naqueles últimos meses e a felicidade de poder vir a ter o seu filho de forma digna num hospital decente, as palavras daquele juiz lhe lembraram as do nazareno que há mais de dois mil anos se insurgira reprovativo e duro contra uns homens do deserto que se dispunham a julgar e a apedrejar uma jovem mulher chamada Maria Madalena: “atire a primeira pedra quem nunca cometeu um pecado”, lhes dissera o santo homem fazendo com que retrocedessem em seu intento.

E fora talvez exatamente naquele momento que a vida de Edna enfim pudera renascer. Fora talvez naquele instante que ela tomara de volta em suas mãos os fios do curso de sua existência. Era como se toda a sua vida tivesse regressado ao ponto de partida e tudo houvesse recomeçado para ela, como se uma borracha mágica e misteriosa viesse apagando e apaziguando vagarosamente todas as mágoas e dores que a haviam feito sofrer e afastar-se da presença encantada daquela antiga adolescente que corria livremente pelas ruas do lugarejo onde nascera.

– Doutor João – ousara a mulher dirigir-se ao juiz, mal acreditando no que os seus olhos e ouvidos lhe diziam - eu estou livre, estou realmente livre?

O juiz balançou a cabeça afirmativamente:

- Está sim, dona Edna. Está livre para ir embora e seguir o seu próprio caminho. Está livre para ter o seu filho como qualquer mãe e mulher desse país, de uma forma digna e bem distante dos muros e das celas de uma prisão...

– Doutor João – continuara a mulher, com os olhos cada vez mais brilhantes - antes de partir, gostaria de lhe fazer uma promessa: se essa criança que carrego comigo for homem e com vida vier a nascer, há de ser batizada com o seu nome. João Batista ela se chamara. E ficará sendo essa a minha homenagem ao senhor e ao dia em que me libertei.

A isso, o juiz respondeu:

– Mas sabe a senhora como morreu o outro João Batista, aquele da Bíblia, o anunciador de Jesus?

- Não, não sei, dissera a mulher.

– Cortaram a cabeça dele, dona Edna, explicou o meritíssimo, aguardando a reação da mulher.

– Não tem problema não, doutor João. Não tem importância. O menino assim mesmo se chamará João Batista, exatamente como o senhor.

V

Conforme ficara determinado pelo juiz, um ano depois de sair da prisão Edna deveria retornar ao Fórum de Vila Velha.

Nessa ocasião, no entanto, apresentara-se de maneira bem distinta daquela como o meritíssimo a havia visto na última vez em que se encontraram naquela sala de audiências.

Agora ela trazia o rosto corado e um sorriso saudável. É verdade que engordara um pouco e por isso já não parecia mais tão franzina e miúda quanto aparentara na outra ocasião.

Mas era entre os seus braços que se encontrava a maior diferença. Edna trazia ali a luz e o brilho do seu amor: acabara ganhando uma linda garotinha, exatamente como havia prenunciado a sua companheira de cela.

A menina fora batizada com o nome de Elke, em homenagem à manequim e modelo Elke Maravilha. Mais do que em qualquer outra ocasião em sua existência, colocara Edna naquele nome mágico todas as suas esperanças, forças e desejos de vida. A simples presença daquele nome como que confirmava para ela a possibilidade de que a vida da menina pudesse se transmutar numa autêntica “maravilha”. Aquele nome com certeza guardava o dom de fazer com que tudo de mais belo e maravilhoso que existisse no mundo já principiasse a enfeitar os caminhos e os passos da garota desde o seu nascimento e o próprio nome de batismo.

A partir daquele momento – concluíra Edna nos poucos minutos em que estivera sentada diante daquele juiz “estranho” e “maravilhoso” – a partir daquele instante tudo em sua vida haveria necessariamente de dar certo; tudo teria que ser feito com todo o carinho e da forma mais consciente que lhe fosse possível.

Começara agora de fato uma nova existência para Edna e para a filha de Edna e tudo haveria de ser tão maravilhoso quanto aquele significativo nome com que presenteara o bebê.