Na beira do rio, confesso que chorei

 

Loira, olhos verdes, lábios bem desenhados, carnudos na medida certa. Cabelos curtinhos. Bundinha empinada. Não dava para não notar. E não se encantar.

 

Fomos apresentados por uma amiga em comum. Pai fazendeiro no interior, estudava e morava na escola de enfermagem.

- Gostei da sua amiga. Uma graça.

 

- Acho que ela se interessou por você também. Vou aproximá-los. Convido os dois para minha festa de aniversário. Lá vocês se entendem.

 

No jantar de aniversário, na mesa grande, sentei-me de frente para ela. Conversamos bastante. Uma semana depois, no meu aniversário, começamos a namorar.

 

Namoro de fim de semana, sábados e domingos. Dia de semana não dava porque eu trabalhava de dia e estudava à noite. Telefonava quando podia. Meio complicado. Ligava para a escola. Tinham de chamá-la no quarto ou na sala de aula. Nem sempre possível.

 

Nas noites de sábado, ia vê-la. No início, ficávamos numa salinha de visitas pequena. Sem porta, mas com certa intimidade. As freiras implicaram e passamos a namorar na sala maior. Sem nenhuma privacidade. Às vezes outro casal estava lá. Eles num canto, nós no outro. Ficava com inveja do cara. A dele, bonita como a minha, só outro tipo, morena clara. Mas não era por isso que o invejava. A dele era mais carinhosa. A minha não muito. Nunca vi igual. Queria que a minha fosse daquele jeito. Seria mais feliz.

 

Difícil sair à noite por causa do toque de recolher. Quem saía tinha de voltar cedo, no horário, ou se explicaria depois. As freiras não davam moleza. Também, se não fosse assim, com tantas moças no pedaço, o pensionato viraria zona.

 

Raramente cinema. No domingo, matinê, passear, essas coisas.

 

As meninas organizaram uma excursão para a praia, num domingo. Dessas de farofeiro. Não gostava, não fui. Poucas oportunidades de ver o mar, no caso dela. Ela foi. Fiquei com pena, não me importei. Ela não gostou da minha atitude.

 

Quando voltaram, eu já a esperava no pensionato. Tomou um banho e saímos para jantar numa pizzaria. Estava bonita na simplicidade e pressa para se arrumar. Arranjou um lenço de seda na cabeça. Azul turquesa. Realçava os olhos verdes, o rosto alvo, os lábios carnudos. De fechar o comércio.

 

Na pizzaria, quando entramos, todo mundo olhou. Tive a sensação de que o mundo parou para nos ver. Ou seja, ver a ela. Estava realmente linda, deslumbrante.

 

Durante o jantar, propôs terminar. Não entendi. Queixou-se que era um namoro de fim de semana. Passávamos a semana inteira sem nos ver e pouco nos falávamos por telefone. Também não combinávamos em alguns assuntos. Melhor parar por ali.

 

Percebi que já estava gostando dela além da conta. O coração apertou. Fiquei triste. Tentei argumentar que até o fim do ano teria de ser assim. Era o último ano da faculdade. Depois seria diferente. Poderíamos nos ver todos os dias, se ela quisesse.

 

Eu estava a fim de salvar o namoro. No meio da semana faltei à aula de sociologia para ir vê-la. Não poderia fazer isso sempre.

 

Mas a coisa esfriou. Sábado seguinte nos vimos. No domingo, não.

 

Concluí que ela tinha razão. Melhor terminar. Havia pontos em que divergíamos. Ela achava que tínhamos de concordar em todos. Ficava confusa com meus argumentos. Melhor terminar.

 

Segunda-feira passei o dia agoniado, querendo acabar logo com aquilo. Não deixar para o próximo fim de semana. Solicitei ao colega que me dava carona para a faculdade para, no caminho, passar na escola de enfermagem. Ela estava de plantão no hospital. Tocamos para lá.

 

Pedi para chamá-la. Veio do berçário. Primeira vez que a vi com o uniforme de enfermeira. Estava bonita. Acho que era linda de qualquer jeito.

 

- Vim para me despedir. Você está certa. Não vale a pena continuar.

 

Ela permaneceu em silêncio. Dei-lhe o último beijo e desci a rampa. Antes de entrar no carro, olhei e a vi parada na porta. Acenei um aceno triste de adeus. Ela respondeu timidamente. Entrei no carro. Nunca mais a vi.

 

No sábado seguinte, uns colegas da faculdade, e já meus amigos, marcaram uma pescaria. Fui com eles. Fomos logo após o almoço de sábado para voltar no domingo.

 

Na verdade, de pescaria aquilo não teve nada. Foi farra na beira do Iguaçu. Para seis ou sete, fomos com três carros e um caminhão. A carroceria, coberta com lona, serviria de dormitório para a eventualidade de alguém querer dormir. Um barril de chope dos grandes. Cachaça. Filé para a janta. Costela para o almoço de domingo. Linguiça de aperitivo.

 

Numa churrascaria da estrada da Lapa, perto da entrada de Guajuvira, o local da pescaria, encomendamos maionese. Por coincidência o dono era o Boiadeiro, um sujeito que por algum tempo teve comércio no meu bairro. Não sei como fora parar ali.

 

Antes de anoitecer eu e o Erber fomos buscar a encomenda.

 

- Resolvi não fazer maionese. Sem geladeira, pode estragar. Vão comer, passar mal ou morrer e eu vou levar a culpa. Fiz uma salada de batata. Vão sentir um gostinho de vinagre no fundo. Não vai estragar - desculpou-se o Boiadeiro, não sabendo que tínhamos bastante gelo para o chope.

 

Até que enfim alguém de juízo. Pensei, sabendo que tínhamos gelo. Mas quem iria se lembrar de manter a maionese gelada?

 

Quando anoiteceu, sangramos o barril de chope. O Rubens abriu o repertório de piadas. Era exímio na arte. Capaz de passar a noite inteira contando uma atrás da outra sem repetir.

 

A roda estava animada, mas, súbito, estremeci com a lembrança dela. Era a hora em que estaríamos na sala do pensionato, namorando. Impossível não lembrar.

 

Senti uma profunda melancolia e um aperto amedrontador no peito. Silenciei e me afastei do grupo. Fui para a beira do rio.

 

A água refletia a luz da Lua. Plantei-me ali e nesse clarão via descer o rio as imagens dela. Ora de um jeito, ora de outro. Os lábios carnudos. O cabelinho curto. Os olhos verdes, o turbante azul turquesa. Na porta, vestida de enfermeira. Às vezes sorrindo.

 

As imagens se sucediam e se alternavam. Surgiam rio acima, passavam por mim e desvaneciam rio abaixo como num filme.

 

Estava demorando a voltar, o Erber veio ao meu encontro.

 

- Você não está passando bem? Precisa de alguma coisa?

 

- Não é nada - respondi.

 

- Você está chorando?

 

- Já passou, as águas levaram. Não vai voltar. Vamos nos juntar aos outros.

 

Olhei para o leito do rio mais uma vez e vi a derradeira imagem dela aparecendo e desaparecendo. Os lábios carnudos, os olhos verdes, na cabeça o turbante azul turquesa...


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N. do A. - Na ilustração, leito do Rio Iguaçu em foto do autor.

João Carlos Hey
Enviado por João Carlos Hey em 12/01/2012
Reeditado em 09/04/2022
Código do texto: T3436844
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