O DIÁRIO

Quarta-feira fiquei por casa, fiz-lhe uma limpeza geral. Mas sempre que tocava em algo que me lembrava Lúcia, sentia-me muito emocionado, sentava-me e chorava desconsoladamente.

Como tinha a chave do seu apartamento, nessa tarde, por curiosidade, pesquisei algumas das suas coisas mais pessoais, acabei por dar com um pequeno caderno de capa de pele castanha, que depreendi ser o seu diário. Desconhecia a sua existência, tive inicialmente alguma reserva em violar a sua privacidade. Mas, pensei, nunca tivemos segredos um para o outro, então porque não lê-lo?

Deitei-me na cama que tinha sido a sua e onde tínhamos pernoitado várias vezes e passado muitos momentos de paixão, era como se ainda sentisse o calor do seu corpo junto ao meu. Comecei a ler e a cada página senti a emoção num crescendo avassalador até que as lágrimas, toldando-me a visão, me obrigaram a parar a leitura. De uma ponta à outra aquele diário transmitia uma mensagem de grande amor por mim, apaixonado, descrevendo com ternura os passeios que dávamos, as refeições que tomávamos, até o primeiro beijo foi recordado. As suas palavras exprimiam um carinho imenso e um amor grandioso, que tinham correspondência nos sentimentos que nutria por ela. Eu fiquei afogado na mágoa de a ter perdido, de ter ficado privado da sua companhia, era como se me tivessem arrancado uma parte vital do corpo.

Posteriormente, não houve um dia, uma ocasião, em que não lesse pelo menos uma ou duas páginas desse diário. Tornou-se a minha leitura de cabeceira. Mesmo passados alguns meses após a sua morte, não conseguia reprimir a dor da sua perda. Nunca amei assim ninguém, senti-me roubado, espoliado, tinham tirado a minha alma.

Olhava as caixas de papelão onde repousavam alguns dos seus pertences mais íntimos, sentia ali a sua presença, era uma tortura que me deixava de rastos, mas a que não conseguia furtar-me, atraído por tudo o que lhe dizia respeito. Cada vez que lhes tocava, sentia uma onda avassaladora de emoções que me levavam a soluços incontroláveis, acabando num choro desolador.

Num dia à tarde telefonei para os pais da Lúcia, tentando perceber o que pensavam fazer não só com as coisas pessoais dela mas também com o andar. A mãe disse-me que na semana seguinte viriam a Lisboa e entretanto decidiriam. Assim, continuei a ser o fiel guardião dos seus pertences, tudo aquilo que me fazia recordá-la fisicamente.

In “Memórias de um Pinga-Amor” – texto original, meu.

Ferreira Estêvão
Enviado por Ferreira Estêvão em 31/01/2012
Reeditado em 17/08/2017
Código do texto: T3472669
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