O RETORNO

O RETORNO

“Todos esperavam por ela! Não se sabia como ela voltaria depois de ausência de quase dez anos! Mas o vilarejo estava em furor, na expectativa, pois a saída dela da região tinha sido algo no mínimo esquisito, pra não falar suspeito”. Assim se iniciava um artigo do jornalzinho Folha de Brejo Verde, de 1992, relatando a grande expectativa pela volta de uma garota que, ao partir de lá dez anos antes, havia causado sensações e sentimentos diversos.

Muitos diziam que, de fato mesmo, ela, por algum motivo, tinha fugido e não partido. A família da garota alegava nada saber sobre a decisão dela e se manteve nisso, mas os poderosos do vilarejo, de certa forma envolvidos com ela e tremendamente inconformados com aquela atitude, chegaram a torturar o irmão dela, Marcos, que afirmou nada ter dito porque nada sabia. Todavia, muitos acham que alguma informação ele tinha e passou. Nada que se pôde provar. O pobre manca gravemente até hoje, mais de trinta anos após aqueles acontecimentos, pelo efeito daquela cruel tortura. E continua a negar ter dito algo.

Entre a partida, ou fuga, dela, em 1982, e sua visita à família em 1992, muita coisa ocorreu no vilarejo. O tempo esmaece a memória; todavia, mesmo depois desses longos anos, todos ainda tinham vivo no pensamento o momento daquela obscura e questionada despedida. O motivo, se alguém realmente soube, guardou para si. Só se sabia que Neuza (Neuzita) Lima de Souza de repente fez as malas e caiu no mundo, fugindo sem maiores explicações a familiares e amigos. E sem explicação dos familiares também.

De modo que a perspectiva de seu também inesperado retorno estava causando praticamente o mesmo alvoroço da partida. A mãe, orgulhosa e incontrolavelmente feliz, tinha espalhado que a filha chegaria a qualquer momento para uma visita à família.

“Como ela estaria?” Inclusive fisicamente! Na partida, Neuzita passava pouco dos dezoito anos, ainda uma menina se transformando em moça. Como ela seria agora, mulher de 28? “Teria casado?” “Seria mãe?” “É noiva?” “Continua magra?” “Engordou?” Perguntas e mais perguntas típicas nas pequenas comunidades.

Brejo Verde é um dos vários vilarejos daquela região e o melhor adjetivo que os caracteriza é minúsculo, cerca de duzentas famílias, não mais que isso. No entanto, havia uma fábrica no local, na verdade um curtume (hoje, modernizado, pertence a um grupo americano), que empregava a maioria das pessoas dali. Com isso, a comunidade tinha (e tem ainda) até um bom comércio, vende suas bugigangas e, também como nos demais vilarejos próximos, algum artesanato típico. Todos sobreviviam e sobrevivem.

Diferente do que ocorre nos dias de hoje, quem nascia ali, desde sempre, tinha pouca oportunidade de sair, buscar outras plagas e aventuras. O jeito era se arranjar por lá mesmo, botar filhos no mundo, pra seguirem a mesma sina dos pais, dos avós, dos bisavós... Plagiando Drummond: “eta vida besta!”. Por isso, a saída intempestiva de Neuzita tinha despertado admiração, suspeitas e curiosidades. E quando não se sabe o fato, inventa-se.

Aventaram-se as mais desbaratadas hipóteses, que deixo de relatar aqui para não chocar, mas eram feias, escabrosas até, isso garanto. Nada nunca confirmado ou negado, simplesmente ignorado. A única certeza que se tinha era que Neuzita era noiva prometida de Ernesto Valdez, de uma família bem posta economicamente no vilarejo, e o casamento já estava até marcado para bem breve. Preparativos em acelerado andamento.

O pai de Ernesto, de famigerada truculência, uma espécie de revivescência, naquele interior do Sudeste, do coronelismo nordestino dos anos 1930 nos anos 1980, truculência herdada pelo filho, era o responsável pelo curtume e, pelo poder econômico, se destacava das demais famílias.

O curtume era empresa estrangeira, talvez chilena. Mas não posso afirmar que não fosse argentina. O Sr. Hidalgo Valdez possivelmente era até sócio e o dirigia com pulso firme, tudo sob seu jugo inquestionável. E seu poder econômico lhe fez perder a noção da realidade e assumir-se como a lei e a ordem locais. Agia e atuava com mão de ferro nas decisões políticas, administrativas, policiais e judiciárias do vilarejo, sempre favoráveis a seus próprios interesses e aos do curtume.

Por isso, diz a lenda que, naquela época, coisa de trinta anos atrás, a família Valdez não hesitava em fazer justiça com as próprias mãos quando algo interferia na sua vida e no seu comando. Pai e filho agiam como poderosos coronéis e alguns cidadãos, jovens ou não, que não seguiram a cartilha da família sumiram. Durante anos impuseram seu poder e conseguiram total subserviência dos que restaram.

Até que, finalmente, em 1990, um corpo foi encontrado, um policial decente investigou a fundo, descobriu os autores, a Polícia e a Justiça estaduais, pressionadas, foram forçadas a agir, prenderam os Valdez, pai e filho, e mais alguns capangas deles. Hoje o velho Valdez já morreu e o filho já está livre, mas não mora no Brasil, com medo de represálias.

Neuzita, ao contrário de Ernesto, era, como as demais nubentes da região, pobre, mas não miserável, sua família tinha para as necessidades, escola ela fez no único colégio da rede oficial num dos vilarejos da redondeza, conseguira concluir o ensino médio. E lia muito a guria, o que era sua salvação, pois era a única atividade de lazer que podia ter ali. Devorou as revistas e os muitos livros que caíram em suas mãos.

Dois singulares e obscuros acontecimentos quase simultâneos abalaram e marcaram Brejo Verde nos idos de 1982. A partida inexplicável de Neuzita e, quatro a cinco meses depois, o completo desaparecimento de João Pereira da Silva Jr., rapaz de 22 anos, até bonito, bastante simpático, agradável e esperto, porém... filho da faxineira do escritório de Hidalgo Valdez, Ernestina Pereira da Silva, e do lavrador João Pereira da Silva, pobres. João tinha cabelos encaracolados, olhos vivos e azuis (ninguém entendia por que olhos azuis, se pai e mãe tinham olhos negros; “outros antecedentes talvez!”), nariz pequeno, boca sempre sorridente, lábios médios e dentes claros. Era e é voz corrente que ele simplesmente também fez as malas e partiu. Sumiu de vez, sem explicações à família e da família, que também nada sabia dele e, dez anos após o sumiço, quando do retorno de Neuzita, ainda continuava ansiosa e esperançosa de vê-lo!

“Se Neuzita está voltando, pelo menos para visitar a família, por que João não voltaria também?” - era uma insistente pergunta muito ouvida no vilarejo. Os moradores acreditavam mesmo que um dia qualquer eles teriam a mesma surpresa que estavam tendo com Neuzita.

O luxuoso carro parou na pracinha de Brejo Verde, na frente da lojinha onde trabalhava a Sra. Maria Lima de Souza, mãe de Neuzita, sob um sol tropicalmente abrasador. Os curiosos olhavam admirados e invejosos de tal luxo. Agora se abrem as portas traseiras e uma menininha de seis anos desce, pelas mãos do motorista; em seguida desceu Neuza Hipólito Caieiras, casada e rica, bonita, sem qualquer sinal de transpiração, elegante e luxuosa num vestido longo, bege, cabelos longos também, radiante. Finalmente desce um terceiro personagem, um garoto sorridente, de olhos azuis, aproximadamente dez anos! O alarido dos presentes foi incontrolável: era a imagem revivida de João Pereira da Silva Jr. com seus dez anos!

Contudo, até hoje nunca mais se ouviu falar de João Pereira da Silva Jr.

Leo Ricino

Fevereiro de 2012

Leo Ricino
Enviado por Leo Ricino em 14/02/2012
Reeditado em 08/04/2012
Código do texto: T3499493