Amanda e Manuela

O nome dela era Amanda. Amanda Silva, Souza, Santos... algo assim. Ninguém se importava muito com sobrenomes naquela comunidade. Sabiam que era a Amanda. Se aparecesse outra com o mesmo nome, saberiam que aquela era a Amanda da primeira rua, perto da casa Joana, filha da Beatriz e a outra, oras, seria a outra Amanda.

O nome da outra era Manuela. A Manuela da fábrica, que podia trabalhar naquele serviço sujo e terrível como qualquer homem daquele lugar. A Manuela das mãos fortes e desejadas por todos os marmanjos daquele lugar esquecido por Deus e pelos deuses.

O que, entretanto, tornava as duas inconfundíveis era o cochicho que rolava por aí. Diziam que elas eram algo mais e chamavam Amanda da primeira rua de Amanda da Manuela e a Manuela da fábrica de Manuela da Amanda.

No início, Manuela se irritava muito com os comentários. Até acertara uma faca no ombro de um bêbado idiota que queria porque queria saber o que as duas faziam à noite. O Velho Gastão, dono do bar, que ficava a duas quadras da fábrica, aconselhou o idiota a não falar mais do que devia, mas o bêbado estava bêbado e só escutava o que o álcool lhe dizia. A razão que se danasse! O cara não morreu, mas nunca mais bebeu um copo de pinga perto daquele bar.

Na realidade, Amanda e Manuela eram vizinhas. Manuela vivia sozinha e Amanda também. Amanda sabia cozinhar muito bem. Manuela era um desastre na cozinha. Por isso, Amanda sempre levava o almoço de Manuela. As duas se viam por cinco minutos, não mais que isso, durante o dia.

A voz de Amanda sempre mudava quando falava desses cinco minutos. Seus olhos brilhavam, seu corpo todo dava sinais de que estava feliz. Podia chover, fazer muito calor, o céu desabar, que o almoço era sempre entregue.

Manuela era a mulher que Amanda queria ser. Forte, destemida, respeitada. Ela se sentia pequena, insignificante, inútil. Morava sozinha não porque queria, mas porque não tinha ninguém. A mãe morrera, o pai a abandonara. Trabalhava costurando e lavando roupas para algumas madames do centro da cidade.

Manuela, por sua vez, amava e destestava seu estilo de vida. Se sentia feliz por poder enfrentar qualquer homem seja em uma briga, seja trabalhando. Nunca abaixaria a cabeça para nenhum fedorento estúpido, que a chamasse de “minha mulher”. Mas se sentia vazia, solitária e queria alguém para abraçar, para amar.

As duas se sentiram ligadas por alguma coisa que não sabiam o que era. E estabeleceram isso do almoço todos os dias. Manuela, sempre tão corajosa, não ousava ir além. Amanda deseja que a outra... que a outra.... ela não sabia o que. Que ela fizesse algo, que aqueles cinco minutos se tornassem cinco horas, cinco dias, cinco meses, cinco anos, cinco séculos.

Mas, nem tudo dura para sempre. Algumas vezes, parece que a pobreza sim,mas aqueles momentos mágicos não iriam durar para sempre não. É que um dia, a filha do Seu Joaquim ficou muito doente e ele cuidava das meninas sozinho. A mulher se casara com um ricaço dos estrangeiros e abandonara as meninas, sem mesmo dizer tchau. Ele não teve outra escolha a não ser levar a pequena, a mais nova delas, para o hospital e perdeu um dia todo de trabalho.

O patrão, que não entendia muito de filhos, de hospitais e dessas coisas que não se chamavam dinheiro, o despediu por justa causa. Foi uma muvuca! Todos ficaram indignados e Manuela chamou todos para uma greve. Ninguém trabalharia até que o Seu Joaquim estivesse trabalhando na fábrica também.

O dono da fábrica poderia ceder. O Velho Joaquim até que trabalhava muito bem, mas com agitador não se conversa com palavras, mas com o porrete da polícia. A confusão foi tremenda!

Os homens de farda desceram o cacete em todo mundo. Um deles, recém saído das fraldas, se borrou de medo quando viu Manuela gritar, empunhando uma chave de fenda. Sacou o revólver e atirou.

Os policias todos pararam na hora. Alguém deu um soco no soldadinho e Amanda correu para socorrer Manuela. Já era tarde. A mulher só teve tempo de murmurar algo parecido com um eu te amo e faleceu.

O comandante aproveitou o momento de comoção e mandou todos os policiais se mandarem dali o mais depressa possível. Quando aquele povo explodisse, ninguém ia segurar.

Depois disso, o dono da fábrica teve que contratar o Seu Joaquim. Não podia ficar com dois empregados a menos e aquela mulher valia por três.

Amanda viu todos voltarem a sua vida normal. Ela ainda fazia o almoço e ia à fábrica todos os dias, mas a comida esfriava e ninguém comia. Ela tinha uma esperança meio besta de que nada daquilo tinha acontecido, que a Manuela da fábrica estaria na fábrica. Mas, todos os dias, se decepcionava. A Manuela da Fábrica era agora a Manuela da lembrança, a Manuela da Greve, a Manuela da cova rasa, do cemitério improvisado, que a prefeitura inaugurou e nunca cuidou.

O velho Joaquim, um dia, perguntou se Amanda não queria viver com ele. Se sentia responsável por aquele olhar triste. Amanda sorriu um sorriso forçado, amargurado, e disse que não precisava de ajuda, mas que reconhecia a bondade do velho.

Ela não precisava de ajuda, porque ninguém podia ajudá-la. A única coisa que a tornaria feliz já não estava mais lá.