Deusa do asfalto

A pereira estava linda, inteiramente branca, enfeitando com suas flores miúdas a primavera no fundo do quintal. Apenas um galho destoava do conjunto. Baixo, quase perpendicular ao tronco. Poucas folhas, nenhuma flor. Antecipadamente abatido pela triste sina reservada para ele. Antes alguém o tivesse decepado e livrasse a árvore da cumplicidade e da vergonha com destino tão cruel.

Ecoava no ar o canto melancólico dos sabiás, confirmando a primavera e anunciando o sol que estava chegando para iluminar mais um dia. Dentro da casa de madeira, no seu pequeno quarto, o rapaz estava sentado na cama tosca. Quase não dormira naquela noite. À luz de uma lamparina começou a moldar com decisão o laço nos poucos metros de corda que havia adquirido na véspera.

Certificou-se de que o laço estava suficientemente firme, mas deixando a corda correr com facilidade. Releu a carta que escrevera para a mãe e contemplou pela última vez o retrato da moça sobre o criado mudo. As lembranças assomavam como um redemoinho à sua mente e traziam-lhe como fundo a música que ora mais traduzia o seu sofrimento.

 
Um dia sonhei um porvir risonho
E coloquei o meu sonho
Num pedestal bem alto

Na carta pedia que o epitáfio na lápide da sua sepultura fosse o título do samba-canção composto por Adelino Moreira, e que naqueles dias singrava os céus através das ondas médias e curtas de todas as emissoras de rádio do Brasil, na voz de Nelson Gonçalves: Deusa do Asfalto.

No frescor dos seus dezenove anos, apaixonara-se por uma moça de vinte e cinco. Bonita e bem nascida, ela aceitou o jogo do amor, sem se importar, aparentemente, com as diferenças de idade e classe social. Mesmo assim, não o deixava ir até sua casa, alegando que seus pais jamais aceitariam o namoro com um menino, simples cobrador de ônibus. Precisariam de um tempo. Desta forma, ele satisfazia-se com um amor platônico, cultivando a esperança de um dia concretizá-lo no altar. Promessa da deusa.

 
Não devia e por isso me condeno
Sendo do morro e moreno
Amar a deusa do asfalto
.

Os meses foram transcorrendo sem que o namoro progredisse. Apenas o amor dele pela moça aumentava a cada momento de estar e, ao mesmo tempo, de não estar com ela. Embora a visse todos os dias, era um namoro de rua. Um entrelaçar de mãos e nada mais. Nem perto da casa dela podia chegar. O que diriam os vizinhos?

Nas últimas semanas reparou que o abdômen da amada demonstrava certo contraste com o corpinho esguio, mas bem torneado. A barriguinha ganhava protuberância. Cada semana estava diferente. Aumentada. Até que não foi mais possível esconder o motivo e ela confessou a verdade.

Disse que gostava dele, mas por ele não tinha paixão. Apenas havia achado interessante jogar. Tinha um namorado da mesma classe social e do agrado dos pais. Embora não o amasse tanto quanto necessário, com ele ia casar-se em breve, pois já estava madura para os padrões da época. Além disso, deixara-se engravidar e o casamento seria o prêmio ou o castigo para ambos. Disso não havia como escapar. Portanto, o jogo acabara. 

 
Um dia ela casou com alguém
Lá do asfalto também
E dizem que bem me quer

O rapaz não tinha estrutura psicológica para suportar a pungente revelação. Sentiu seu castelo de sonhos ruir de uma única vez. Deixou a moça no asfalto sem dizer nada e foi vagar sem rumo pelas ruas da cidade.

De volta ao bairro, ao passar defronte o Armazém Milano, quando já escurecia, viu bem na entrada um rolo de corda de sisal, junto à pilha de alpargatas coloridas. A ideia de suicídio surgiu-lhe imediatamente. Entrou e pediu o suficiente para o propósito insano.

Naquele princípio de dia, após contemplar pela última vez o retrato da moça, apagou a lamparina e saiu em silêncio. No pequeno abrigo junto à cozinha apanhou uma escada de abrir e dirigiu-se para o fundo do quintal. Abriu a escada sob o galho mais baixo da pereira e subiu até o último degrau. Conseguiu alcançá-lo, esticando os braços para atar a ponta da corda. Certificou-se de que estava bem amarrada e passou a cabeça pelo laço aberto na outra ponta. Desceu um degrau para diminuir a folga da corda, de maneira que ela ficasse levemente frouxa, mas sentindo o laço apertar-lhe a garganta.

Rezou um Pai Nosso e uma Ave Maria. Pediu perdão a Deus e a sua mãe e enquanto duas lágrimas lhe desciam pelo rosto, com os dois pés empurrou a escada com força para trás.

Ao longe um galo cantou e os pássaros em volta silenciaram. Os primeiros raios de sol iluminaram o rosto roxo do enforcado.

Dentro da casa sua mãe levantou-se e, como sempre, preparou o café. Com a mesa posta foi ao quarto chamá-lo para o desjejum e mais um dia de trabalho na catraca de um ônibus.

Com a claridade que já começava a assumir o ambiente entrando pela janela, avistou a cama vazia e sobre ela uma folha branca de caderno. Segurando-a com as duas mãos, iniciou a leitura com os parcos recursos que a pouca escola lhe dera. Sentou-se na cama tentando assimilar o que lia. O coração parecia querer saltar pela boca escancarada.

Sem concluir a leitura, a mulher correu para a porta da cozinha e de lá mesmo avistou o filho inerte, preso pela corda ao galho da pereira florida e com os pés longe do chão. Gritando, foi ao encontro dele. Os gritos aflitos despertaram os vizinhos. Os primeiros que vieram trataram de cortar a corda e, com cuidado, colocar o corpo no chão. Tarde demais, era só um corpo. Sem o espírito. Por conseguinte, sem vida.

O acontecimento chocou o bairro. Houve uma romaria de simples curiosos e de outras pessoas que, por caridade ou compaixão, foram levar condolências sinceras e solidariedade a um coração de mãe estraçalhado pela dor. Durante toda a noite do velório, uma multidão cruzou a estreita ponte do riacho que separava da casa do rapaz da rua de saibro. Na sala minúscula, o caixão humilde e quatro velas acesas.

Todos lamentavam a fraqueza do jovem cobrador. Sem criticar ou julgar, muitos achavam que teria sido melhor se, ao invés de empregar o dinheiro na corda, tivesse ido ao Bar do Zonatto, ao lado da casa, ou atravessado a rua em direção ao Bar do Tibúrcio, para afogar a mágoa em tragos de rabo de galo ou acalmar o peito com cachaça curtida em folhas de guaco. Depois de curado do porre, poderia procurar outra namorada e quem sabe casar-se, ainda que fosse com a lua.

 
E eu triste boêmio da rua
Casei-me também com a lua
Que ainda é a minha mulher

Talvez pudesse comprar um violão a prestação para aprender a tocar e cantar com um professor ou em qualquer roda de boemia.
 
É cantando que carrego a minha cruz
Abraçado ao amigo violão
E a noite de luar já não tem luz
Quem me abraça é a negra solidão

Infinitamente melhor para o bairro e para a cidade um boêmio a mais vivo nos bares, chorando desventuras ou cantando e recitando elegias pela amada perdida, do que o fantasma triste de um suicida a implorar perdão.
 
É, é, é, eeé cantando que afasto do coração
Esta mágoa que ficou daquele amor
Se não fosse o amigo violão
Eu morria de saudade e de dor.

Muitos anos depois, um idoso Nelson Gonçalves afirmou em um programa de televisão que gostaria de ser lembrado com o extraordinário sucesso Deusa do Asfalto. O grande ídolo da música popular brasileira não estava sendo tão original. Não sabia ele que um pobre cobrador de ônibus de Curitiba, no Paraná, já havia manifestado este desejo como o último da sua vida, ao querer o título da canção gravado na pedra fria do seu túmulo.
 
***

N. do A. (1) - Conto baseado em fato ocorrido num segmento do bairro do Pilarzinho, hoje parte do Bom Retiro, em Curitiba, estado do Paraná.

N. do A. (2) - As inserções ao longo do texto correspondem à letra original da canção citada.
João Carlos Hey
Enviado por João Carlos Hey em 04/05/2012
Reeditado em 18/04/2020
Código do texto: T3649068
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