RETRATOS SUBJECTIVOS

Lembrava-se desse período como há muitos meses, talvez até alguns anos atrás, mas se recordasse direitinho veria que não, não fazia talvez nem semanas. Estava sem carro. Encontrava-se na oficina aquele caidinho, e descia do quarto andar do prédio onde morava, descendo os lances escuros da escada, desviando os olhos também para as portas cinza hermeticamente fechadas àquela hora (ou seriam azuis a porta?) e tudo isso ocorria ainda com a mesma cotidianidade. Seus sapatos faziam barulho ou o silencio que era devorador, abafado e úmido. Lá fora o dia ainda era um céu esmaltado gris com uma fimbria róseo-alaranjada nascendo além dos morros cercando o horizonte.

À calçada evitava olhar os outros transeuntes também sonolentos, com as mãos nos bolsos do paletó. A gravata bem arranjada, a calça com um vinco um pouco imperfeito embora. Um homem elegante, alto, tímido, acanhado e solitário – mas que ser humano não é em si solitário? Uma mala comprida de alça por sobre o ombro esquerdo. Ia direito, direto e parava ao ponto de ônibus. Fingia não perceber os olhares femininos de apelos vulgares para seu porte e traje – pois sim tinha porte, mais que traje! Escondia os olhos de um castanho claro para as sarjetas. Um corte de cabelo jovem e austero – tipo militar ou cidadão do século XX. Alto, não se empertigava, pois se acrescenta certo acanhamento que o deixa assim curvado. Uns olhos espantados, Felícia que dizia, Uns olhos assustados Franz, e suas mãos tremiam como sempre tremiam. Entrava no ônibus que os outros faziam sinal, porque continuava com as mãos no bolso do paletó, de onde só tirava uma para pagar o cobrador. Sentava-se nos últimos bancos, sempre do lado do corredor, porque o ônibus se enchia rápido, e quando a pessoa ao seu lado descia, passava – defensivamente – para o lado junto à janela, esfregando o nariz comprido, e era no ponto seguinte – quando acontecia de ficar parado um bom tempo, pois muita gente descia ali – então ele via aquele vulto na vidraça de uma janela num ultimo andar de um prédio além da estação ferroviária. O vulto era de uma silhueta escura que parecia dançar afastando a cortina, como se soubesse que lá embaixo, ele, Franz, dentro de um coletivo, grudado à janela estivesse a olhar. Seriam seus cabelos aquilo que ela afastava?, mas tão aderido era o movimento de afastar a cortina como mesmo era o gesto. E aquilo tudo talvez fosse a duração de segundos, contudo se repetia tão rotineiramente nesses todos os dias que era como se o durante daquilo fosse horas. Sonhava às vezes que enxergava olhos brilhantes naquele vulto, naquela silhueta dançante e sensual, afastando as cortinas ou os cabelos.

No colégio onde ensina então pela manha! Ensino médio. Colégio particular. Filosofia, Literatura e Sociologia. Abrindo os olhos sonolentos, bocas bocejantes. Escrevia no quadro branco com piloto azul “proibido bocejar”, e ouvia risadas sussurradas, “As orelhas dele é tão grande”, eram sussurros das meninas no habitual e praticável erro de concordância. Tão normal, que fica até feio se usar a concordância o tempo todo hoje.

Andando pela sala, entre os renques de carteiras, olhando as carinhas tão jovens; algumas carinhas assombradas ou simplesmente aparvalhadas, e se via quando fora um menino magricela e alto numa época em que a lousa era um quadro negro que na verdade era verde, sempre aparvalhado, distraído, contemplativo, amedrontado. Os fantasmas: a vida era assim como uma transmissão de televisão cuja antena não sintoniza bem, e aparecem aquelas sombras pálidas, transparentes, sem significado, ao nosso lado.

Renato suspendeu os olhos vesgos do livro quando o professor passou ao seu lado. Franz deteve-se, mãos cruzadas para trás. Riam baixinho ao meio do ambiente, e Renato se sentia perturbado com o olhar do professor, embora o olhar não fosse casmurro. Suspendeu os ombros e encolheu ainda mais a cabeça quando Franz pegou o livro dele sobre a mesa, levou-o assim junto ao rosto, olhou-o com olhos mansos, calmos – mas que Renato via como severos.

_O Ateneu, mas devemos ler Madame Bovary agora Renato. Flaubert – disse o professor nem tanto em tom didático.

Alguém disse como um assovio:

_Ele só ler este livro, professor.

Franz repôs o livro sobre a mesa do aluno com a capa fronteira para baixo como se de repente, assim num sorriso seco, estivesse consciente de ter revelado um segredo de Renato que acabara de descobrir e desse modo tentasse ocultá-lo novamente.

Ao intervalo da aula, devia ser por volta de nove e meia da manhã, todos deixaram a sala assim apressados, entre pares e trios ou pequenos grupos se empurrando, mas Renato ficou a sala, sentado diante de sua carteira, querendo pegar novamente o livro, mas o professor permanecia a sala, em sua mesa a frente, sentado, com um livro grosso de capa preta e dura que passava os olhos com uma atenção que parecia distraída.

_Não vai tomar seus remédios, Renato – perguntou de súbito sem tirar os olhos do livro.

O menino sentiu uma pontada. Os olhos enviesaram baços, tortos nas orbitas. Então como ele também não saber. O abrigo revelara ainda mais tudo, e se não fosse Charles... Helena o marcara assim como a ferro é marcado o animal: estigma.

_Já tomei professor – disse com seu fio tímido de voz, deixando-se a admirar a imagem do professor: as mãos ossudas e grandes deles que segurava o livro sobre a mesa, os dedos com anéis de doutor, virando as paginas; as orelhas grandes e pontudas se destacando na cabeça comprida, no rosto anguloso, magro, os olhos – quando assim o olhando muito de perto – assustavam como olhos assombrados por fantasmas antigos de museus de cera. Levando uma das mãos em punho a boca, tossiu de forma comedida, e a mesma mão espalmou-se dentro do livro, suspendendo os olhos para fora do interior deste. Assim um pouco de longe eram apenas olhos castanhos, brilhando pela luz do sol que irradiava as paredes do recinto como uma transparente e sutil aquarela.

_Renato você quer me perguntar alguma coisa?

_Não, senhor – respondeu num tom de voz tremulo.

_Não precisa ter vergonha – e o chamou – venha cá quero falar com você.

Renato ergueu-se tímido, tremulo, ajeitou a blusa colegial amarfanhada no corpo; evitou encará-lo, sabendo que bem de perto aqueles olhos eram assombrados. Ficou amparado, de pé, na mesa de frente ao professor, porem sem encará-lo.

_A dona Angélica (era a diretora) me falou que seu primo levou você para morar com ele – e Renato balançou a cabeça afirmativamente – Fico feliz, Renato; não é bom viver em abrigos – calou-se por ética, mas o caso interessara a opinião de professores daquela instituição, todos concordando que a professora Helena agira um tanto quanto desumana.

_O Charles falou que somos como irmãos agora – disse arfante, emocionado, com grande rubor corando lhe as faces pálidas.

_Que bom! O Charles, pelo que conheci dele, sempre me pareceu um rapaz legal – declarou Franz com as duas mãos grandes e ossudas espalmadas no livro aberto sobre a mesa. Os olhos estrábicos de Renato iam direito ali.

_Charles disse que Deus não existe, que Deus é um delírio da humanidade – declarou o garoto de um só folego, grandemente emocionado, arfante.

Franz riu, e os olhos que assombravam Renato – e ele arriscou e olhou – também sorriram.

_Charles está na faculdade – perguntou demonstrando pouco interesse a desviar os olhos assombrosos para o livro aberto.

_Sim, senhor. E ele faz Historia – declarou Renato exaltado.

_Só podia – disse o professor num sacudir de ombros, e Renato desviou os olhos tortos para os pés dele, para os sapatos de couro um pouco embaçados – sim, pés imensos!

_O senhor acredita – perguntou o garoto numa debilidade vocal quase saindo pelo nariz, as mãos em desajustes como garranchos secos.

_Se eu acredito...acredito em que? – foi de repente Franz como se estivera ausente e então...

_Em Deus. O senhor acredita em Deus? E fixou seus olhos tortos para o semblante do homem e chocou-se com aqueles olhos mansos mais terríveis de olhar – como de um fantasma!

O sinal e a entrada em tropel da turma de volta a sala de aula, um pouco que salvou o homem daquela inquirição. Sombrio! – Renato foi recuando devagar de volta ao seu assento, admirando aquele homem alto, um pouco encurvado, certa sombra de tristeza o circundava como uma aureola pesada, vendo-o assim de pé, pronto para a preleção de introdução a Filosofia. Descartes, Pascoal. Parecia um homem educado sob a égide de disciplinas, e certo sorriso cansado o fazia falar um pouco mais alto – às vezes. Falava quase sempre em tom soturno, eloquente, em gestos melífluos e cuidadosos. Lecionava apenas para o terceiro ano do colegial naquele estabelecimento de ensino. Renato o temia, mas pouco a pouco via florescer certa admiração exaltada, assombrada pelos temores, infrutíferos e infantis, de alma de outro mundo.

Ao termino do turno, Renato escondeu-se atrás do pequeno tumulto dos outros adolescentes. Refugiava-se, segurando firme a mochila pelas alças, e não soube que passos tímidos o levou, ainda que atordoado ao pátio onde estacionava os carros. Os carros dos professores. O Fiat uno um pouco amarronzado estava lá de volta. Do professor Franz, ou doutor Franz como ouvira outros professores o chamarem. Entrava no carro, antes jogando sua maleta no banco traseiro. Piscou os faróis. Renato aproximou-se vendo a mão grande do professor o chamando. Chegando junto a janela do automóvel, Renato sentiu o choque do contato com os olhos de assombração, embora mansos.

_Aceita uma carona Renato? – ofereceu com as duas mãos firmes ao volante.

_Vai incomodar o senhor, e é perto eu posso ir a pé – disse num tom vacilante de voz.

_Bobagem, te deixo a porta de casa – insistiu o homem num tom benévolo.

Renato pensou, balbuciou desconexas palavras, sorriu, engoliu em seco. Aceitou. Sentou-se tímido no banco ao lado do motorista sem se encostar-se ao espaldar. Ficou olhando as mãos do professor no volante; o perfil de um homem assombroso, mas bonito, de uma beleza clássica, diferente.

_Gosta de musica, Renato – perguntou ligando o som, enchendo o ambiente com uma suave sinfonia de Vivaldi.

_Gosto sim. Gosto de rock.

Franz sorriu. Renato admirou aquele sorriso seco, um pouco lúgubre assim de lado.

_Charles é mesmo sua influencia. Bom que vocês são como irmãos – disse sem tirar os olhos vidrados da direção, mãos firmes no volante – mãos que Renato já começava a admirar, assim como as pernas compridas naquela calça social preta, os contornos joelhos ossudos. Sentia um cheiro de enciclopédia dentro do caro, mesmo como se emanasse dele, de suas roupas austeras, talvez de seus olhos assombrosos.

_Quero que passemos um ano bom – emendou Franz – todos os professores tecem elogios do seu desempenho desde o fundamental. Quero ter a chance de trabalhar um pouco de Nietzsche com vocês. Sei que você vai adorar!

_Charles me falou de Nietzsche – comentou o garoto num tom fragilizado de voz.

_Charles teve um excelente desempenho em Filosofia – declarou virando os olhos assombrosos para o garoto, que desviou os seus num gesto de pundonor – Charles cursa História, infelizmente aplico apenas um curso sobre Direitos humanos naquela faculdade. É uma ótima instituição Federal – acrescentou mordendo os lábios inferiores.

_É aqui que eu moro – avisou Renato, mas mesmo reconhecia desse modo sendo onde outrora fora a mesma residência baixa. A casa da dona Conceição, e dos avós de Charles à frente, talvez o fizesse lembrar que antes também fora e continuava sendo.

O Carro estacionou ao meio fio em frente ao portão. Podia se ver as plantas do jardim, avançando seus galhos de folhas e flores alegres para fora do muro.

_Obrigado, professor – disse e apertou com acanhamento a mão imensa lhe foi estendida.

_Mande um abraço para o Charles – pediu ainda Franz abrindo a porta para que ele saísse. Renato saiu ainda carregando o acanhamento nos ombros tensos, e antes de se voltar para o portão com sua chave na mão olhou para trás, mas o carro já contornava para pegar a estrada principal.

Já cruzando a alameda do jardim, levou sua mãozinha, que apertara a mão imensa, ao nariz: o cheiro de enciclopédia.