O QUARTO PREENCHIDO

O barulho da cachoeira ali bem perto na escuridão como que nascendo de lá depois do circulo da flama alaranjada da fogueira;era como um ronco de uma fera mitológica em sua imaginação que voava como as asas da coruja que entrara na lua cheia e ficara o rapaz de longos cabelos dourados e das lanternas das três barracas armadas lá erravam certos besouros e mosquitos aflitos. Sentados no chão, em roda em volta da fogueira, bebiam, conversavam fiado a gargalhadas, abandonado o livro e os dados do jogo do RPG. Renato havia se levantado e se distanciado há pouco, e o lugar que durante o dia – assim que chegaram à picape dirigida por Danilo – parecera um bosque quase enfeitiçado por certo tom agreste, embora, agora aos olhos tortos Renato só enxergava uma densa relva negra de escuridão. O som da cachoeira, não muito longe, sobretudo, negro em cima do telhado. Fechou os braços sobre o peito como sentisse frio, mas talvez fosse um pouco de medo, perturbação pela timidez. Charles parecia um tanto alcoolizado; dali do escurinho, Renato podia ver o rosto alvíssimo dele estava corado em brasas, rindo muito. Vinicius sentado ao chão tocava o violão; Thiago rodava com a garrafa de vodca bebendo pelo gargalo e se aproximando de Charles entregou-a. Danilo também se aproximava de Charles, rindo, sacudindo os cabelos escuros, lisos e compridos, lembrando-se dos acampamentos no quintal da casa dele hem, que tempos de pirralho, e gargalhavam pegando cerveja. Os vagalumes acendiam aqui e ali como pisca-pisca na escuridão.

_Renato bem para cá – gritou Charles de onde estava, entregando a garrafa ao cabeludo e barbudo grandalhão que se aproximou. Renato voltou para junto do circulo, olhou assustado para o cabeludo barbudo bebendo pelo gargalo. Ugor, lembrou-se Renato. Restos do liquido da garrafa escorriam viscoso pelos fios emaranhados da barba um pouco avermelhada dele.

Do seu canto sentado, apoiando o corpo ao violão, Vinicius começou a encarar Renato de uma forma que encabulou este, assim rindo a mostrar os dentes em aparelhos.

Charles abraçou Renato por sobre os ombros, este se encolheu num riso débil.

_Meu mano, meu mano mesmo este moleque – foi dizendo a sacudi-lo – estou ensinando a ele as coisas boas.

_Até a gostar de mulher – pilheriou Thiago, e causou risadinhas em todos. Renato abaixou o semblante constrangido ficando cheio de rubor. Charles o estreitou de uma forma um pouco agressiva, apertando-o e disse rindo, Nem tudo pode ser perfeito, vamos respeitar, vamos respeitar – enfatizou.

Aconteceu entre o grupo um silencio ambíguo e demorado, entre trocas de olhares maliciosos e duvidosos, mas num estalo Danilo ligou o som em sua picape, um AC/DC para agitar, e Vinicius mesmo desistiu do violão, partiu como todos para a cerveja que estava disposta a uma caixa de isopor com gelo junto às barracas, a maioria em latinhas.

Charles insistia para que Renato provasse da garrafa na sua mão.

_Eu não devo – resmungou num tom de subserviência Renato olhando-o admirado.

_Eu estou mandando – falou num tom de voz firme, definitivo Charles assustando Renato que acabou aceitando como quem obedece. Thiago riu chamando a atenção dos outros para a cena.

Renato devolveu-lhe a garrafa depois de provar um pouco. A bebida descera seca e queimando, mesmo tossiu, mas Charles ordenou que ele bebesse mais, como homem, foi o que acrescentou, e Renato obedeceu, fazendo Thiago rolar na grama de rir, ao meio do som delirante do AC/DC. Mas todos já riam muito, e meio tonto Renato recebeu da mão imensa de Ugor uma latinha de cerveja, e reconheceu o vocal do Ozzy gritando oh train hahahahaha... e logo um pilheriava o outro, faziam rodas no meio da mata. Charles parecia cair aos socos e chutes com Ugor, que o dominava com um mata-leão jogando-o ao chão. Renato desabou próximo, confuso, segurando o braço forte e tatuado de Ugor, pedindo que largasse ele, não machuca ele. Charles disse se erguendo, logo Ugor soltou-o, Qual é Renato é brincadeira, tá bolando, e deu-lhe uma palmada na testa, o garoto zarolho riu, quase pareceu cair para trás, porem uma mão o segurou pelo ombro e o oferecia uma lata de cerveja úmida, ele podia acreditar que a lata era enorme, imensa, quase se jogando em cima dele. O rosto de barba emaranhada emergiu de uma pequena escuridão com uma garrafa quadrada com um liquido dourado como âmbar, e bramiu a garrafa para o alto e todos vieram se atropelando para cima. Charles conseguiu-a pegar, levou-a a boca pelo gargalo, correu do encalço dos outros que o perseguia, subiu a uma pequena rocha que havia perto da cachoeira, e com os cabelos desgrenhados, gritou com as mãos para cima empunhando a garrafa de uísque:

_ Eu sou o demônio – e gargalhou, balançando a camisa preta com a estampa da banda Black Metal.

Renato já ria, ria, rolando pelo chão. Estavam todos embriagados, felizes, no glamour do alvoroço; sozinhos na noite negra e densa, úmida e de luar fraco, próximo à mata e a queda rouca de uma cascata. Renato emergiu próximo a ele como que acendendo na escuridão. Charles olhou-o ali de cima, franzindo o cenho. Ele parecia prateado na pele e dourado nos cabelos longos. Renato escalou a pequena rocha e enlaçou-se a ele, apertando-o num amplexo firme com seus braços finos. Os dois quedaram-se da rocha agarrados sem muitos danos, mas Renato, atônito pela embriaguez, via a face de Charles transformar-se num cenho carregado, os olhos verdes ganharam um tom cinzento escuro e amargo, e os lábios crisparam. Renato sentia aquele animal vivo de novo em suas mãos, quente, muito quente, mas por que os olhos verdes tinham um tom tão amargo quanto os lábios crispados e o cenho carregado.

Que palavras usara, se mesmo usara palavras?, começou a reagir lenta uma consciência que subia como uma calda morno ao fogo brando, e percebia aos poucos que estava despertando, mas despertando de um longo sono como um coma profundo. Estava atônito, desnorteado, pouco a pouco querendo entender, reconhecer afinal aquelas paredes brancas, aquele cheiro forte de éter, uns gemidos longínquos, vozes abafadas, tosses secas. As pálpebras estremeceram tentando despertar pesadamente, lembrando que sentira como se ainda sentisse um gosto de agua gelada e insipida entrando pela boca e ardendo pelo nariz. Estivera se afogando? Fora um sonho? Ainda estava sonhando, ou dentro deste sonho? Seus olhos, embaçados por uma semiescuridão lúgubre, alcançaram um frasco dependurado ao seu lado que pingava lentamente, e desse frasco descia, por um tubo cravado a sua veia em seu braço imóvel, um liquido meio amarelado. Viria daquilo aquele gosto? Sentiu o leito frio como o branco acinzentado das paredes que o cercava. Estava hospitalizado, foi como que despertando, contudo sem grandes haustos de quem acorda de um pesadelo. Virou a cabeça para o lado e viu Charles sentado em uma cadeira ao lado do leito onde estava deitado. Ele estava com os braços cruzados sobre o peito, o rosto um pouco transfigurado de transtorno; os cabelos longos e dourados caiam em desalinho pelo rosto, pelos ombros – parecia muito enfezado. Do outro lado, deitado em um leito havia algo enrolado em um lençol que bem poderia ser um corpo já sem vida, contudo fez um movimento com gemidos que o assustou, e preferiu voltar-se para o rosto enfezado e quase imóvel de Charles, sentado ali ao seu lado. Tremeu os lábios, pois vinha ardendo em suas entranhas uma vontade danada de chorar. Agua, agua, ele estivera se afogando ou teria sido um sonho do momento em que perdera o sentido? Sim, porque perdera o sentido, havia um fio partido e sua lembrança até acordar agora ali eram apenas imagens confusas como de um pesadelo.

_O que foi que eu fiz Charles – perguntou num balbucio choroso. Ouviu a risada seca de Charles estalar no silencio grave do recinto.

_Relaxa ai, maninho. A culpa foi minha mesmo – disse apenas, batendo os punhos contra os joelhos. Nem ao menos trocara de roupa: a bermuda estava mais molhada, embora a camisa preta estivesse apenas úmida. O tempo deve ter passado.

Deve ser madrugada – pensou Renato em meio ao amargo da melancolia. A penumbra lúgubre os envolvia e um choro desesperado de criança não muito longe dali trouxe logo em seguida um aroma quente e ardido de éter. Renato começou a arquejar soluçando em pranto. Charles levantou-se, aproximou-se do leito e disse num tom furioso e sussurrado:

_ Pare de chorar. Não adianta ficar chorando. Já disse que a culpa é minha. Te dei bebida. Agi como um irracional. Conrado, minha avó e meu avô estão vindo ai, e é enfrentar eles, e se você ficar chorando como um bebezinho vai piorar a situação – mas dando-lhe as costas continuou em outro tom – chora, Renato, chora. Estou querendo me safar, mas tenho que arcar com o que eu fiz. Quase te matei cara, quase te matei – foi dizendo agora num tom monocórdio – ouviu um soluço atrás de si – Se não fosse o Thiago e o Ugor eu tinha te afogado – fechou as mãos em punho – ódio, ódio... Mas, a culpa é minha mesmo – decidiu afinal como que conformado.

O que acontecera mesmo? A água o sufocando, uma força o impulsionando para baixo, o verde da grama colado ao nariz – era um coelho branco pulando aquilo? – de novo... sim, sim suas mãos tocaram algo quente, pulsante, “filho da p...” foi um cuspe na cara ou a água já o sufocando? Charles tentara mata-lo. Chorou, chorou sacudindo todo corpo. Não queria ver dona Helena, Conrado, as caras de nojo, “Eu te avisei Charles”.

_Está recebendo glicose – ouviu a voz de Charles falando a alguém. Eles chegaram e não tinha coragem para virar o rosto e encará-los. Vozes sussurradas, num tom amargo, quente, cheio de haustos de suspiros densos.

Depois de trocado de roupa, recebendo alta, ficou quietinho no banco traseiro do carro de Conrado. Charles estava sentado ao lado dele na frente. O pai e o filho, pensou Renato, constrangido lembrando cada vez mais do que ocorrera, vendo o rabo de cavalo nos cabelos de Charles, a voz dele muito firme dizendo para Conrado que quando chegasse a casa, iria Renato se alimentar, beber bastante líquidos e repousar. Conrado apenas pigarreou. Renato tentou olhar a paisagem que corria pelo vidro da janela do carro, mas a amargura e tristeza o roía por dentro, e nem os dourados raios mornos do sol que lhe lambiam o rosto era capaz de confortá-lo.

Aquele dia tornou-se úmido, pegajoso; preferiu ficar assim deitadinho, esperando a tristeza corroê-lo devagar. Charles saiu do banho, desceu para tomar café, voltou depois. o chá que Virgínia trouxera continuava esfriando na cabeceira da cama. Permaneceu virado contra a parede, e escutou Charles desabafar num tom saturado de voz:

_Dormir, dormir, hibernar. Estou podre de cansaço.

Um soluço sacudiu Renato, abalou o quarto, o pranto rompeu dele como uma tempestade. Charles pôs-se sentado na cama, de torso nu, cabelos úmidos avulsos.

_Renato para de tanto chorar; tenta relaxar cara – disse ele num sutil tom áspero.

_Foi horrível o que eu fiz – disse num desespero embargado de voz, sem se voltar, com a cara para a parede.

_Está se lembrando hem – comentou Charles rindo – eu que estou fodido; vão cair na minha pele a vida toda.

_Eu não queria eu juro – apelou em prantos, virando-se.

Charles o encarou de cenho carregado, mas com um sorriso irônico nos lábios, saltou para cama de Renato, sentou-se ao lado dele, sacudiu-o fazendo com que ele o encarasse.

_Renato, eu quero saber. Quero ouvir da sua boca a verdade. Você sente o que por mim?

Renato deitado, um dos braços sobre os olhos, sacudindo-se em prantos, nada respondeu.

_Vamos me responde, cara, eu estou mandando – gritou com autoridade Charles num tom de rispidez que acelerou o pranto desesperado no outro garoto.

_Eu sou aidético, Charles, você sabe – respondeu choramingando, soerguendo-se na cama, evitando encará-lo.

_Não é essa a resposta para a pergunta que lhe fiz – disse num tom seco e firme, com a mão a suspender-lhe pelo queixo o rosto.

_Talvez seja melhor você me mandar de volta para o abrigo – respondeu humílimo, num tom fino e esganiçado de voz – foi um erro, Charles, sua avó tinha razão.

_Larga de bobagem – falou Charles num tom de voz em desabafo, desabou o rosto entre as mãos, os cotovelos fincados nas coxas, os cabelos dourados resvalando.

_Mas, você me odeia, não é, você me odeia, Charles – quis saber Renato em prantos, sacudindo-se.

_Não, não odeio você, Renato – respondeu Charles levantando a cabeça, jogando os longos cabelos loiros para trás. Tomou-o pelos ombros e o estreitou junto a si num abraço. Renato confortou seu rosto em prantos ao ombro esquerdo de Charles, pediu desculpas. Não tinha mais ninguém no mundo, nem mais nada, apenas Charles que se importava com ele, e resmungou baixinho isto pedindo desculpas por tê-lo ofendido em seu ignominioso amor.

_Tudo bem – respondeu Charles como que o sacudindo pelos ombros – vamos esquecer isto. Trate de descansar, que eu vou fazer o mesmo – e saltou para a sua cama, deitando-se de lado, virado de costas. Renato suspirou ainda engasgado pela tristeza, e admirou as costas do amado-amigo, os cabelos dourados em desalinho pelo rosto, pela fronha. Seu coração queimava, arquejava levemente a cada suspiro. Experimentou umas lagrimas afiadas que precisavam explodir. Queria sentir o perfume dele como ainda pouco. Era mesmo, incorrigivelmente, apaixonado.

Rodney Aragão.